Teoria
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História, Ciência e Mídia: ícones da conquista ou achamento do Brasil

 (1999, segundo semestre)


Angela de Faria Vieira


A proximidade do ano 2000 está sendo amplamente noticiada. Mídias destacam a nova demarcação histórica que se aproxima, e a dimensão temporal concretiza o surgimento de um espaço lógico e simbólico para a humanidade.

Onde as permanências e onde as modificações, que operam na estruturação da vida social, se tornam sensíveis evidências ou expressões da vida cultural do mundo moderno? Quais idéias de cursos da civilização - que estabeleceu o referencial da era cristã, na graduação ou periodização da história - são repassadas via codificações midiáticas?

Estudos das mediações dos meios simbólicos - que estão em intenso processo de transmissão e circulação via meios de comunicação contemporâneos, face a difusão maciça de informações - elucidam “encruzilhadas e labirintos” da história humana contemporânea, pois penetram na “cerração midiática” (Bougnoux) tal qual se apresenta na realidade do pensamento complexo e da experiência atual. Um reposicionamento geral, um novo “estado” de visão de mundo, exigidos como um fênomeno de “virada histórica” geram efervescência de ânimos e desconforto.
Há uma razão epistemológica (fundadora da expressão) e outra arqueológica (denotadora de construção discursiva) na encruzilhada do tempo, que enunciadas em mensagens, instauram-se sob a égide do “espírito do tempo”.

Uma ratio dos rituais de uma “Sociedade dos Sonhos” (Rocha, E.) parece servir à configuração do espaço-tempo limítrofe do século que finda. Qual a familiaridade estética com o tempo e com a história, com o seu passado, do homem atual? Qual perspectiva de consciência na relação homem-mundo denota estar o brasileiro, numa prática ativa de cidadania... desvelando e realizando um plano de conhecimento do mundo?

A investigação do fato comunicacional nunca se ofereceu tão valiosa como agora, neste fim de século, para dimensionar a complexidade do ser do homem na arena das relações humanas; onde diante de si e da vida o indivíduo opera reconhecimentos e (re)construções, em meio ao desafio de uma diversidade de paradigmas, fragmentários e paradoxalmente globalizados. O desafio adaptativo é factual.
O enfrentamento das possibilidades dos rumos históricos, a decodificação do que eles prenunciam, determinam angústias e caracterizam um momento de perplexidade e de busca de respostas.

A proximidade do futuro já fora alvo de reflexões, no passado, de inúmeros sábios, sensitivos, filósofos... Visões e projeções sobre o destino da humanidade têm gerado farta literatura. O profeta Nostradamus esteve recentemente em manchetes e noticiosos, revisitado por suas idéias antecipatórias, dando forma ao imaginário coletivo, via poderes da mídia.

A chamada cultura de massa tende a espelhar dimensões da psiqué ou do imaginário coletivo, que os ícones da indústria cultural dinamizam em mensagem persuasiva, publicidade, codificações visuais, arquitetura, cinema... e a "intuição semiológica" dá visibilidade ao fundar um modo compreensivo da referenciação simbólica, buscando o cognoscível na perspectiva analítica da língua (aproximações formuladas por Saussure).

O homem quando opera sobre dimensões de realidades, constrói idéias que considera relevantes de serem examinadas, busca seus pares e abre o debate; compartilha com parceiros a experiência da gnose. Aprofunda o seu conhecimento, prolonga, estende em dimensões culturais aspectos da sua experiência de conhecer. Diante da aprendizagem via contato perceptivo (inspiração na hermenêutica da sensibilidade de Merleau-Ponty) o seu entendimento abre-se para uma arqueologia do percebido, e a expressão deste sentimento e desta intelecção possibilita uma relação de intimidade com o tempo e o espaço, uma potencialização deste modo internalizador e de ser, permite encontrar o homem atuando no curso das ações do seu tempo histórico. E assim, como se num oráculo de Delphos estivesse, o Templo de Zeus, realiza dimensões compreensivo-sensíveis do ser, da consciência, do sentido existencial dialógico, num plano de comunhão subjetiva, evoca “luzes”, busca a proteção, teme um destino.

Preocupa-se com o modo de caminhar... libera atavismos e teme profecias, racionaliza explicações e nelas finca o seu senso de direção, emociona-se diante do que não conhece e exulta diante do mistério da vida, teme ou confia, entrega suas dúvidas a dimensões subjetivas ou espirituais, ou nada indaga em meio à sensação de ausência de referenciais para estimar mudanças. Estas são possibilidades de descrição do homem diante do inusitado ou da perplexidade do seu tempo.
Explicações para os fenômenos da natureza inauguraram uma racionalidade sendo consolidada com a experiência do conhecer e do fazer ciência. Caminhando por aí, a dimensão histórica tornou-se um método, e o conteúdo do percurso, a própria história.


Brasil: conquista quinhentista

Uma perspectiva memorialista da história apresenta fatos, datas e nomes que indicam o percurso da presença do colonizador europeu na outrora Terra de Vera Cruz; relata a sua ação no contato com o silvícola habitante da terra e indica o modo exploratório do branco português.

Na dimensão política, a narrativa histórica situa relações e interesses dos colonizadores num contexto mercantilista da época das chamadas “grandes navegações”.

A superação da visão ingênua - que marcou a literatura alusiva ao Descobrimento do Brasil, particularmente os livros didáticos, dá-se progressivamente diante da reapresentação ou releitura da própria história, por historiadores, estudiosos de áres afins, educadores que trabalham voltados para a ótica crítica dos conteúdos.
A análise documental oferece matéria prima para reexames de relatos históricos. Numa maiêutica, que a tudo inquire e responde com novas indagações, o olhar reflexivo e o conhecimento crítico dos fatos históricos, vão se delineando na modernidade como uma “grande obra aberta” a estimular novas incursões críticas, a inteligência viva e criativa em busca de posicionamentos mais fidedignos ante o passado, tornando o processo de investigação e reexploração dos primórdios do Brasil uma aventura pelo conhecimento no tempo.

O ano 2000 demarca os 500 anos do Brasil. A contagem regressiva que esteve na mídia cotidianamente possibilitou um revisitar da história, em plena pós-modernidade, através de “prosa eletrônica” e "versos cibernéticos" - que estão no “ar” na telinha da televisão ou do microcomputador, via web.

Nos currículos escolares os conteúdos sobre História do Brasil sempre tiveram destaque, pois são as referências da formação do povo brasileiro, elucidação fundamental para a construção da cidadania.

Mitos, arquétipos e descrições do Brasil Colônia apresentam: o Indígena em comunhão com a natureza e o primeiro habitante da terra; o Português como a presença da cultura do homem branco que prevalesce pelo domínio - ação, intencionalidade de controle e poder - do meio e do homem primitivo; o “novo” continente se apresenta como paradisíaco pela beleza e fertilidade natural... "nele se plantando... tudo dá".

A história difundida, classicamente, tem a “chancela” - no modo de olhar e expressar - da cultura do branco colonizador.

Existe uma riqueza na diversidade étnica da formação do povo brasileiro que a apropriação de senso comum superficialmente avalia.

A penetração que Darcy Ribeiro conseguiu nos povos indígenas brasileiros possibilita identificar um traço estético e um prisma filosófico nas raízes do Brasil: a beleza, a busca do belo, do adorno, na forma e na expressão do ser.

“O presente estará ali, recordando sempre que aquele bom amigo existe e é capaz de fazer coisas tão lindas. Essa compreensão importa na conclusão de que a verdadeira função que os índios esperam de tudo o que fazem é a beleza... sua função real, vale dizer, sua forma de contribuir para a harmonia da vida coletiva e para a expressão da cultura, é criar beleza.” (Confissões.1997, p. 160)

O etnólogo apresenta o seu saber antropológico elaborado após uma vida de aprendizado com indígenas de diferentes tribos no território brasileiro, e considerou ter aprendido a ver o mundo com o olhar deles.

Enfocar os quinhentos anos do Brasil revisitando o modo de sentir e estar no mundo, pela tradição dos povos indígenas, significa evocar raízes da sociedade brasileira, sem o glamour habitual da busca da presença cultural européia nos hábitos e costumes brasileiros.

"Os mais isolados que sobrevivem para além das fronteiras da civilização, vestidos de sua nudez emplumada e revestidos de todas as características interiores e exteriores de sua indianidade, vêm o brasileiro, que chega ali com quinhentos anos de atraso, como os primeiros índios viram chegar as naus quinhentistas... Entre uns e outros há toda uma escala de indianidade. Em qualquer delas, porém, estamos diante de índios, como descendentes da gente que estava aqui antes de Colombo e de Cabral. Gente que, milagrosamente, permanece ela mesma, menos pelo seu modo de ser e de viver, que se alterou enormemente ao longo dos séculos, do que por um sentimento íntimo e indelével de sua própria identidade... minha monografia sobre a religião, a mitologia e a arte dos índios Kadiwéu, iluminada por quinhentos desenhos deles, é, a meu juízo, uma das melhores coisas da etnologia brasileira... Outro povo indígena com que convivi foram os Guarani... que contrastam de modo flagrante com os Kadiwéu. Em lugar de orgulho tribal, exibiam uma humildade impressionante. Viviam tão maltrapilhos e submissos que levei tempos para começar a ver, debaixo daquela pobreza exibida, a intensa vida espiritual que eles cultivavam. Tendo convertido os mitos da criação em mitos de anunciação do fim do mundo, eles pedem continuamente ao Grande Tigre Azul de Deus-Pai, que voa sobre os céus, que baixe, para acabar com a vida: 'Estamos exaustos', dizem. 'A Terra está cansada de comer cadáveres. Ponha um fim'."

"Os Guarani são a consciência viva da desgraça que a civilização desencadeou sobre os índios. Liderados por seus pajés, eles estão migrando há mais de um século rumo ao mar, à procura da “Terra Sem Males”. Migram andando de dia e dançando e cantando à noite, na esperança de que seus corpos se tornem tão leves que eles levitem, para entrarem na morada de Deus-Pai... Com os índios da nascente do rio Xingu, no centro do Brasil, eu aprendi demais... ver aquelas tribos todas, falando línguas diferentes, mas com suas culturas uniformizadas - a mesma forma das casas, os mesmos arranjos de decoro, as mesmas comidas, as mesmas cerimônias, as mesmas danças - performadas por gente que, entretanto, guarda a sua identidade própria, orgulhosa dela. Esses xinguanos estabeleceram uma sorte de Liga das Nações, substituindo a guerra por prélios esportivos... competições esportivas... põem toda a alma, numa torcida fervorosa..."

"O que mais se marcou em mim, do convívio com os xinguanos, foi sua pungente vontade de beleza. Eu a encontrei em todos os grupos indígenas com que convivi... Cada obra - um cesto, uma flecha ou uma panela de cerâmica - é o retrato vivo de quem a fez, reconhecível por todos. Vi um índio tomar um maço de flechas que eu tinha nas mãos, colhidas de várias aldeias, e dizer-me, uma a uma, de quem eram... Com os Xokleng do Sul do Brasil, conheci um povo que percorreu em cinqüenta anos todo o caminho de 'silvícolas bravios em guerra contra todos' ao de 'pobres índios integrados na civilização, como assalariados'. A civilização, no caso deles, é uma área agrícola próspera de colonos alemães, aos quais foram dadas as suas matas. Ali eu vi, comovido, o esforço ingente que eles faziam para ser reconhecidos como gente pelos seus vizinhos teutos... Uns anos atrás... meu romance Maíra, sobre minhas vivências nas aldeias indígenas. Enquanto o escrevi, eu estava lá na ladeia com eles. Era outra vez, um jovem etnólogo, aprendendo a ver seu povo e a ver o meu mundo com os olhos deles... aculturação... agora eu chamo de transfiguração étnica. Recordando, tantos anos depois... Mais que um objeto de observação e estudo, os Kadiwéu foram meus professores de metodologia etnológica. Com eles aprendi que só uma identificação emocional profunda pode romper as barreiras à comunicação, permitindo a um estranho penetrar a intimidade que atingia praticamente o máximo a que pode aspirar um antropólogo no seu esforço por ver o mundo com os olhos do povo que estuda." (Confissões, 1997, pp. 161-173)


Lusitanidade imperial

Antes mesmo do achamento do Brasil, o Vaticano estabeleceu as normas básicas de ação colonizadora:

"Não sem grande alegria chegou ao nosso conhecimento que nosso dileto infante D. Henrique, incendiado no ardor da fé e zelo da salvação das almas, se esforça por fazer conhecer e venerar em todo o orbe o nome gloriosíssimo de Deus, reduzindo à sua fé não só os sarracenos, inimigos dela, como também quaisquer outros infiéis... Por isso nós, tudo pensando com devida ponderação, concedemos ao dito rei Afonso a plena e livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos seus descendentes. Tudo declaramos pertencer de direito in perpetuum aos mesmos D. Afonso e seus sucessores, e ao infante. Se alguém, indivíduo ou coletividade, infringir essas determinações, seja excomungado..." Nicolau V, Romanus Pontifex, 8 de janeiro de 1454. (RIBEIRO, D. 1995, pp. 39-40) .

"Por nossa mera liberalidade, e de ciência certa, e em razão da plenitude do poder Apostólico, todas as ilhas e terras firmes achadas e por achar, descobertas ou por descobrir, para o Ocidente e o Meio-Dia, fazendo e construindo uma linha desde o pólo Ártico... a vós e a vossos herdeiros e sucessores (reis de Castela e Leão) pela autoridade do Deus onipotente a nós concedida em S. Pedro, assim como do vicariato de Jesus Cristo, a qual exercemos na Terra, para sempre... vô-las doamos, concedemos e entregamos com todos os seus domínios, cidades, fortalezas, lugares... direitos, jurisdições e todas as pertenças. E a vós e aos sobreditos herdeiros e sucessores, vos fazemos, constituímos e deputamos por senhores das mesmas, com pleno, livre e onímodo poder, autoridade e jurisdição..." Bula Papal Inter Coetera, de 4 de maio de 1493.

"É preciso reconhecer que essa é, ainda hoje, a lei vigente no Brasil. É o fundamento sobre o qual se dispõe, por exceção. A dação de um pequeno território a um povo indígena... é o fundamento, ainda, do direito latifundiário à terra firme que lhe foi uma vez outorgada, bem como o comando de todo o povo como uma mera força de trabalho, sem destino próprio, cuja função era servir ao senhorio oriundo daquelas bulas." (RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo, Cia. das Letras, 1995, pp. 39-41.)

A lógica da colonização empreendida por Portugal e Espanha, nações expansionistas do seu poder geo-econômico-político em busca de novos mundos, encontra-se nos propósitos mercantis, com as navegações e o comércio.

A razão predominantemente econômica imprimiu marcas predatórias na gestão das colônias. A miopia da Corte, ou da Realeza, para o aspecto da cultura nativa encontrada com os habitantes silvícolas, quando do achamento do Brasil, determinou conflitos, confrontos e aridez com a progressiva perda de riquezas naturais que migravam para a Europa.

Um contraste define o quadro de confronto entre os povos indígenas de cultura tribal com simplificado “ordenamento social” , vivência igualitária e de co-participação entre os seus membros, rudimentar sistema produtivo, modo mítico de culto à natureza e aos seus fenômenos nela encontrando a divindade e a civilização urbana portuguesa, estratificada socialmente, de disputa por domínios territoriais em sua complexidade econômica e política, de cultura letrada, tendo na institucionalização da fé o seu aparato missionário - força da Igreja - a sua meta de expansionismo da cristandade católica.

Catolicismo e Protestantismo divididos, dissidentes, em luta flagrante nos movimentos: Reforma e Contra-Reforma, iniciam no velho mundo suas diásporas mas confirmam o uso de um poder secular cristocêntrico, que caracteriza a Igreja como a instituição religiosa de aparato estatal na idade média européia, uma unidade política poderossíssima a comandar o mundo conhecido e a “orientar” a formação dos Estados Nacionais, com a superação do poder feudal.

O discurso da fé estabelece-se no Brasil pela ação jesuítica com a catequese, ou educação religiosa. A Companhia de Jesus, de Loyola, factualmente, organizou e direcionou a colonização ou o programa civilizador.

As Missões, narradas em crônicas coloniais, distanciam-se das metas de mero povoamento agrário-mercantil da Coroa portuguesa - estes, pragmáticos ideólogos do enriquecimento através das colônias, "restauradores financistas"; aqueles eruditos missionários de “um rei que não era deste mundo” - “... a tarefa a que os missionários se propunham não era transplantar os modos europeus de ser e viver para o Novo Mundo. Era, ao contrário, recriar aqui o humano, desenvolvendo suas melhores potencialidades, para implantar, afinal, uma sociedade solidária, igualitária, orante e pia, nas bases sonhadas pelos profetas... Essas utopias se opunham tão cruamente ao projeto colonial que a guerra se instalou prontamente entre colonos e sacerdotes... Em lugar de sacros reinos pios, sob reis missionários a serviço da Igreja e de Deus, os reis de Espanha e de Portugal queriam o reino deste mundo”.(RIBEIRO, D., 1995. pp. 60-63).

Padre Antonio Vieira, considerado o maior orador sacro de Portugal, escreveu inúmeras cartas, tratados, textos de natureza política e social; mas a sua erudição, riqueza informativa, pureza de linguagem, apuro estilístico, inserção concreta e crítica na defesa da liberdade do índio ressaltam aos olhos nos seus afamados Sermões.
As imagens que cria espelham a sua percepção dos fatos e ações da época, e nele denotam facetas que convergem: o idealista, o político, o missionário, o patriota, a personalidade vigorosa de um intelectual à frente do seu tempo.

Vieira, nos primórdios do Brasil, falou aos homens “e aos peixes” (Sermão de Santo Antonio) que sabiam silenciar e ouvir. Neste célebre Sermão faz sentenciadora crítica ao egoísmo reinante na ação dos colonizadores, saindo em arrebatadora defesa dos índios é do missionário catequista a exortar o senso de humanidade. Notável argumentação e peroração!

“Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que tem ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra não se deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra não se deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!... Se a Igreja quer que preguemos de Santo Antonio sobre o Evangelho, dê-nos outros. Vos estis sal terrae: é muito bom texto para os outros santos doutores; mas para Santo Antonio vem-lhe muito curto. Os outros santos doutores da Igreja foram sal da terra, Santo Antonio foi sal da terra e do mar... Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo Antonio, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens não se aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que eles me ouvirão... Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam... Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para que não se corrompa... Onde há bons e maus, há que louvar e repreender... louvar-vos-ei as vossas virtudes... repreender-vos-ei os vossos vícios... Ao homem Deus deu a monarquia e o domínio de todos os animais... aos homens deu Deus uso da razão, e não aos peixes, mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão... Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre!... Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouví também agora as vossas repreensões. Serví-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda... vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este... não só vos comeis uns aos outros, senão que grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal... Olhai como estranha isto Santo Agostinho... 'Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como peixes, que se comem uns aos outros'... Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos... Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerais, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós... Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a sua plebe: plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são os menores, os que menos podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos... os engolem e os devoram: qui devorant... Parece-vos bem isto, peixes?... Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós... Medí-vos, e logo vereis quão pouco fundamento tendes de blasonar, nem roncar... Com os voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com o nadar, e não queirais voar, pois sois peixes... Grande ambição é que sendo o mar tão imenso, lhe não basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira outro elemento mais largo... O polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a primeira traição e roubo que faz é a luz, para que não distinga as cores. Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor... Ah! peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade! Quanto melhor me fora não tomar a Deus nas mãos, que tomá-lo indignamente!... A vossa bruteza é melhor que a minha razão e o vosso instinto melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com as palavras... com a memória... com o entendimento... com a vontade... Vós fostes criados por Deus, para servir ao homem, e conseguis o fim para que fostes criados; a mim criou-me para servir a ele, e eu não consigo o fim para que me criou...” (VIEIRA, A. Sermões Escolhidos. 1996, Ulisseia de Autores Portugueses, pp. 73-106)

A perspectiva histórica na dimensão epistemológica moderna clarifica não ser possível construir um conhecimento científico separando formas de pensamento e seus recursos da linguagem enunciadora, sendo portanto necessário um sistema adequado de signos, a ser elaborado e constantemente atualizado; a razão se constrói ao mesmo tempo que investiga. A lógica do discurso, aqui, funda-se no propósito de revisitar um momento (num recorte do tempo e no espaço) da História do Brasil, e recolocar reflexivamente a imanência da história humana, que subjaz à retórica.
Cinco séculos de achamento do Brasil... qual a “face humana” desta constatação histórica? No mundo contemporâneo, quais os avanços e o balizamento desta longa jornada?

Em entrevista concedida a alunos da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a professora de História Contemporânea Lená Medeiros comentou aspectos restritivos a oportunidade de promoção e comemoração dos 500 anos do Brasil:

“Em primeiro lugar, tenho uma dúvida sobre o quê estamos comemorando... O que significa essa descoberta? É a descoberta do outro (o indígena) que foi dizimado? Ou é a glorificação da projeção européia? De qualquer forma, as comemorações não têm apontado para a dominação e a exclusão social, que foram e são elementos cruciais na história brasileira e, geralmente, nunca vêm à tona quando se coloca a questão do descobrimento. Por outro lado, o que se tem visto a partir da televisão, por enquanto, está influenciado pelo discurso neoliberal, que isenta de responsabilidade o Estado em temas como a educação, por exemplo. Repete-se mais uma vez a idéia da salvação do Brasil através da educação. Colocada desde o Império sem que recursos sejam alocados para que os resultados tenham algo a ver com os discursos... uma visão ufanista do Brasil que, de alguma maneira, contempla a história do progresso, mascarando tudo aquilo que por séculos tem sido varrido para debaixo do tapete... Acho que os 500 anos coincidindo com a virada do milênio deveriam ser um espaço-tempo privilegiado para discutir não só as mudanças que o país conheceu ao longo dos tempos, mas as permanências seculares que emperram a construção de uma Nação mais igualitária e justa, servindo de exemplo a questão fundiária e a permanência do latifúndio como chaga aberta nos tempos coloniais. (MENEZES, L. M. Uma Aula de Educação. Entrevista realizada por Luciana Araújo. In. De FATO - Jornal Laboratório/DJR/FCS, Ano II, n. 3 - junho 98, p. 4)

Alerta a historiadora e doutora em História Social para os referenciais que estão sendo escolhidos para situar e discutir o surgimento do Brasil... para a história; sem deixar de atualizar a visão de processo: o que é remanescente daquele período, o que ainda está a figurar no cenário do Brasil contemporâneo?

O Brasil, hoje, tal como se configura - socialmente, econômico-politicamente - reflete aspectos do modo colonizador nos ritmos diferentes e tradições diversas das regiões, que dão forma aos regionalismos, nos padrões e matrizes da formação do povo brasileiro, na diversidade cultural...

O Brasil colonial fora como um “continente” disputado por portugueses, franceses, holandeses... por monarquias européias, mas também refletira a dialética do poder na disputa com a Igreja - ora aliada, voz ordenadora, missionária e prevalescente na razão de procedência divina; ora austera e rica organização cumprindo seus desígnios seculares no mundo - a cuidar de manter a sua peculiar influência junto aos Reinados que se modernizavam e dissociavam do jugo da religião instituída, como advento dos Estado Nacionais embrionários-emergentes.

O arcaico e o moderno ainda mapeiam o território nacional, sob diferentes aspectos tanto nas populações rurais quanto nas urbanas.

“Esse é o resultado fundamental do processo de deculturação das matrizes formadoras do povo brasileiro. Empobrecido, embora, no plano cultural com relação a seus ancestrais europeus, africanos e indígenas, o brasileiro comum se construiu como homem tábua rasa, mais receptivo às inovações do progresso do que o camponês europeu tradicionalista, o índio comunitário ou o negro tribal.” (RIBEIRO, D. 1995. P. 249)

Uma economia colonial vinculada aos ditames do poder de Estado numa ordem social que não privilegiou um prisma de progresso para toda a sociedade, perdurou nos períodos históricos subsequentes, acentuando-se com a presença do chamado patronato empresarial e sua esfera de interesses, a “roupagem colonial” ganhou “novo padrão estético” ou uma estética político-econômica sofisticada.

A educação é a questão social que flagrantemente sinaliza para a desigualdade e o descompassado que se aponta: entre interesses capitalistas, comerciais, pecuniários e as necessidades sociais fundamentais.

“Tiradentes, a figura principal da conspiração, um militar de ofício, tinha sempre em mãos um exemplar da constituição norte-americana para mostrar como se devia e se podia reorganizar a vida social e econômica depois da emancipação do jugo português”. (RIBEIRO, D. 1995, p. 379)

Há um traço que mantém reunido no território nacional, milhões de brasileiros, a etnicidade invulgar, encontrada: no “banzo” negro, canto de saudade, nostalgia, apaziguando e contendo a força de uma ferocidade doída de maltrato-desprezo-isolamento; nos ritos harmoniosos de comunhão com a natureza e o gosto pela dança e pelo canto advindos do ancestral guerreiro indígena, indomado para o trabalho escravo, mas dizimado no confronto com o invasor; na gestualidade , no padrão civilizatório, na língua do branco europeu... tudo e tanto, também, num esquema corporal de concreta miscigenação étnico-cultural.

“Em 1952, a UNESCO, recém-nascida, se tomou de entusiasmo por duas lições que o Brasil podia dar ao mundo. Nossa democracia racial, fundada na livre mestiçagem de índios, negros e brancos. E a não menos assinalável assimilação dos povos indígenas que, depois dos primeiros contatos com as fronteiras da civilização, nela se fundiram, indiferenciáveis. Mas a UNESCO não ficou na proclamação desses avanços brasileiros. Montou uma vasta pesquisa de campo para verificar factualmente uma e outra... as conclusões científicas foram unânimes. Não havia nenhuma democracia racial... Os negros e mulatos eram e são objeto de dominação, discriminação e vítimas de preconceitos cruéis.

Nesse quadro, coube a mim o estudo da assimilação dos índios na sociedade brasileira que, pelo simples convívio, se transformariam em brasileiros autênticos, esquecendo suas origens. Também aqui o resultado foi decepcionante. Em todos os casos que pude observar, nenhum grupo indígena se converteu numa vila brasileira... Os índios foram exterminados através de várias formas de coação biótica, ecológica, econômica e cultural. Seu antigo habitat foi ocupado por outra gente, com a qual eles nunca se identificaram e que cresceu com base em outras formas de adaptação ecológica, tornando-se rapidamente independente de qualquer contribuição da comunidade indígena.

Só se contava até então com a abordagem da aculturação, visivelmente incapaz de explicar o que acontecia com as culturas postas em confronto, particularmente com as culturas de nível tribal, alcançadas pelas fronteiras da civilização. Impotente também para explorar aquele contexto importantíssimo de relações humanas, para explicar como as etnias e as nações nascem e se transformam. Isso é o que proponho fazer na minha teoria da transfiguração étnica... uma teoria explicativa, substitutiva do que era disponível então... elaborei... 'Os índios e a civilização'... a compreensão de que as culturas são imperativamente transformadas no confronto de umas com as outras... Mas sua identificações étnicas originais persistem, resistindo a toda sorte de violência... A transfiguração étnica consiste precisamente nos modos de transformação de toda a vida e cultura de um grupo para tornar viável sua existência no contexto hostil, mantendo sua identificação.” (RIBEIRO, D. 1997, pp. 190-193)

Um esboço, um breve recorte da farta história que remonta o Brasil Colonial é
o que se verifica aqui.

A proximidade do novo século... estando o país engolfado num desconforto social sério com desemprego, violência grassando, e a mídia ganhando audiência com os noticiosos que apresentam mazelas e marginalidade da população nos recantos dos “Brasis” que coexistem, não se pode ignorar os reclamos históricos de um povo “sobrevivente“ quisera-o tal qual traduz a emoção na musicalidade cívica: “heróico”... “retumbante”... ao sol da liberdade em raios fúlgidos... brilhando... no céu da Pátria... sua terra mais garrida... nossas vidas... um sonho intenso... céu risonho e límpido... terra adorada ..... filhos deste solo.... Brasil!

Sem ufanismo e nem xenofobia...

Um sentimento e uma consciência de nação urgem revitalizar o ânimo da sociedade brasileira, sobretudo num mundo de globalização tecnológica e econômica, de modo a valorizar a memória com os olhos postos na realidade... num reconhecimento da existência de uma tradição cultural que fincou os marcos da história do país, numa perspectiva antropológica plena; numa predisposição ao trabalho renovador do prisma cultural para a ocorrência de um exercício histórico-concreto da cidadania... e assim agindo, refletir sobre cinco séculos de caminhada com uma atitude analítica para um aprendizado crítico: um “sumo” educacional.


Cinema: a missão

Uma mídia, que é um audiovisual de grande penetração e aceitação, é o cinema . Sérias e bem cuidadas produções difundiram, através de inúmeros e bons filmes, a história, inclusive a do Brasil.

Vários filmes que já saíram dos circuitos cinematográficos, estão “compactados” para a televisão, é o caso de “Carlota Joaquina”, que teve em Carla Camurati e seleto elenco os construtores-produtores. Há um recontar da história recriada na imaginação de roteiristas e dos espectadores; uma retomada da paisagem e dos protagonistas de outrora no tempo da memória... suscitando um modo de conscientização do processo histórico, favorecendo, também, a organização de um conhecimento - conteúdo e forma de um período do Brasil - para um olhar analítico do espectador.

O Brasil teve a experiência da monarquia. A cultura européia influenciou os hábitos do “novo mundo”, “o paraíso perdido”, de modo decisivo na prolongada “crônica civilizatória”.

Quando, na modernidade, políticas de corporações internacionais enquadram o Brasil no bloco latino-americano esquecem, ou desconhecem, traços deste país de dimensões continentais, tão estrategicamente importante - no espaço, na economia, na cultura “híbrida”... a refletir a presença do velho e do novo mundo, na resultante: um Estado-Nação.

O Brasil parece ser bem mais latino hoje do que outrora. O Mercosul exemplifica uma realidade econômico-política de fortalecimento de vínculos e cooperação de um bloco geo-estratégico no dinamismo das forças internacionais, situada no continente americano.

O brasileiro fala o idioma português, em todo o terrítorio nacional, apenas alguns e “últimos moicanos” brasilíndios falam seus dialetos de origem. O tupi-guarani foi um língua praticada por índios brasileiros e jesuítas missionários. Sequer tornou-se um espécie de “Esperanto” para os brasileiros, em alguma fase histórica da nação.
O tupi-guarani não estabeleceu uma unidade linguística pátria; mas, sim, o português, dos colonizadores. E nem tão pouco o espanhol, tal como aconteceu nos demais países latinos.

É o Brasil, numa dimensão etnológico-arqueológica: “negro-silvícola-europeizado” desenraízado da dimensão primitiva da formação do povo pela ação “educativa” promovida pelo processo inculcador da colonização. Através da conscientização, da reflexão histórica, e de uma prática ativa de cidadania, é que o brasileiro vai se reconhecendo e “admitindo” como ente e possuidor de história.

Retomando na perspectiva do cinema há um filme de grandiosa concepção tanto no roteiro, bem cuidado, e boa pesquisa histórica, quanto na paisagem de exuberante natureza, trata-se de "The mission". Uma produção de FERNANDO GHIA e DAVID PUTTNAM, com uma trilha sonora magistral, de ENNIO MORICONE e ROBERT BOLT. Tendo como atores protagonistas: Robert De Niro, em torno do qual a história se desenvolve, e Jeremy Irons - no papel do jesuíta e catequista dos índios numa das Missões.

O filme apresenta os interesses mercantis portugueses e espanhóis, e o modo de gerenciar a presença dos padres jesuítas, em suas colônias. Particularmente, retrata a decisão política do Primeiro Ministro Português, o Marquês de Pombal, um “déspota salvacionista” dito, também, “esclarecido”, que ganhou imensos poderes diante da Coroa (D. José I: 1750-1771) depois que a mesma fragilizou-se com o terremoto em Portugal que gerou urgência na recontrução do país.

Os antagonismos entre a ação missionária - que realizava educação religiosa e trazia o indígena para uma concepção civilizatória católica, com um estudo do modus vivendi daqueles povos identificados primitivos - e os interesses econômico-políticos dos patrocinadores das missões, a Realeza, voltava-se para um expansionismo ultramarino possibilitado pela navegação oceânica.

A decisão de retirada dos jesuítas gerou um desmonte dos chamados Povos da Missões, onde a penetração missionária melhor conseguira resultados de aculturação do indígena ao parâmetro civilizacional europeu e cristão.

Há uma trilha sonora de impecável apuro musical e harmonização ao enredo cinematográfico. Ouve-se os cantos da “Ave Maria Guarani” e o “Te Deum Guarani” diante da cena de indígenas de diferentes idades, em meio à selva, orientados pelo guia espiritual e educador, o jesuíta, que o ator Jeremy Irons constrói.

Das missões desassistidas pelos tutores europeus, houve saída contrariada porém, pacífica dos jesuítas; entretanto, destacou-se, historicamente, pela reação, a Missão de S. Miguel , que foi uma que resistiu à decisão política da Coroa, tendo os padres missionários uma atitude de insubordinação civil, já que não admitiram deixar as comunidades indígenas que docilmente submeteram-se a ação catequética.

O clímax do filme é o confronto dos protagonistas, protegendo os índios, lutando contra as milícias européias que chacinaram a missão. Os jesuítas que se dividiram no trabalho a “El Rei” sob a supervisão clerical que também pretendia com a catequese a conquista de novos adeptos e os poucos que assumiram posições de defesa e resguardo dos índios, foram todos expulsos do Brasil... “Marques de Pombal decide acabar com aquela experiência socialista precoce, expulsando-os do Brasil.”
(RIBEIRO, Darcy)

Pombal e a Sociedade de Jesus exemplificam a clássica e acirrada dissidência entre secularização na gestão da sociedade pelo Estado e o modo de controle eclesiástico das instituições religiosas, no caso, da Igreja Católica Apostólica e Romana (investida de poderes seculares para atuação terrena ou comunal, outorgados pelo Papa, autoridade máxima na hierarquia da igreja institucionalizada).

Uma imagem cristã medieval do mundo difundiu a crença que o mundo é de Deus, tendo como representante na Terra a Igreja Católica - orbis christianus; e o Papa e os reis tinham por missão estender e sustentar a fé, fazendo reinar a graça de Deus... Havia urgência em anunciar a Palavra da salvação... assim submetidos... garantindo-se desta forma a unidade do orbe cristão... (PAIVA, J.M. Colonização e Catequese. pp. 18-23)

A presença jesuítica marcou fortemente a educação no Brasil, e era de inspiração escolástica. A literatura foi o recurso didático largamente utilizado pelos religiosos educadores. Toda a ação dos missionários fez-se acompanhar da construção da visão cristã do mundo. Sobre eles pesa o julgamento histórico, de tal visão ser, também, um modo ideológico e cristocêntrico de exercício de poder .

“...o responsável pelo direcionamento dado por Loyola aos membros de sua Companhia: a uns foi confiada a tarefa de educar com rigor as elites européias; a outros, o dever de expandir, com relativa criatividade, a fé entre os pagãos das terras novas; a terceiros, a obrigação de produzir, no campo da teologia, das ciências e das letras...” (SOARES, Ismar de O. Do Santo Ofício à Libertação. pp. 41-42).

Também não são poupados os padres missionários pelo próprio Darcy Ribeiro, que registrou crítica ferrenha ao exercício de uma prática cultural alienadora via processo catequético. Havendo diferenciação por níveis, como: baixa, média e alta cultura, entre as diversas tribos que habitaram o Brasil - tapuias, baixa cultura; jês e tupis, média cultura e, na América andina os incas, maias e astecas alta cultura, qualquer colonização que realizasse um nivelamento cultural pela ordem dominante (“a sua”, como foi a européia), não estaria promovendo uma aproximação entre culturas, mas ao contrário, exercendo-se ação inculcadora. A complexidade do modo cultural do homem branco colonizador, inevitavelmente gerou choque no confronto com culturas distintas, como foi para a cultura dos negros africanos e para os indígenas, sobretudo, pela força da dominação que abusivamente escravizou, comercializou e desenraizou elementos humanos com o intuito de propiciar mão-de-obra para o projeto colonial, em curso e em expansão.

A visão mais “laicizada” que Pombal tentou engendrar no Brasil, após a expulsão dos jesuítas, não gerou bons resultados práticos. E o atraso sócio-educacional do país tem aí também, uma demarcação factual.

Toda tentativa de apropriação de uma fragmento do passado tem o mérito da busca, do rastreamento, do empenho reflexivo e de tentativa de síntese e conclusão. Entretanto, quando se busca uma compreensão de natureza mais complexa, como o conhecimento da história humana, é importante uma atitude de humildade diante do processo de investigação. Um “ponto de vista” enunciado é um recorte de uma história maior; assim, precisa receber o enriquecimento de outras análises, o que relativiza uma possível conclusão ou fechamento.

Um todo contém várias “partes” que lhe dão expressão e sentido. Uma codificação intelectual que socializa um saber, certamente, busca “seus pares”, para o necessário aprofundamento, pois está por completar-se.

Uma abordagem tematizada e qualitativa da história, aqui em curso, considera de modo concreto a participação na construção do conhecimento reflexivo, na medida em que seleciona, situa, analisa conteúdos e traduz uma dimensão fértil de estudo. Eis um pressuposto e uma orientação, ou uma elucidação do modo metodológico de referenciação teórica no decorrer da enunciação analítica.

Os adeptos das teses milenaristas na origem do pensamento utópico, aqui talvez viessem acrescentar que o itinerário literário propicia associações, identificações que constróem conclusões.

Revisitou-se, no presente ensaio, a história do surgimento do Brasil em um cenário civilizacional de perspectiva européia, recordando narrativas de um etnólogo-antropólogo profundamente conhecedor da saga civilizatória humana, sobretudo a brasileira, como Darcy Ribeiro. Mas documentalmente, fez-se da breve demarche retórica de Antonio Vieira, uma reália do que pensou um missionário intelectualmente bem dotado, como o afamado orador barroco, naquele momento da história, onde vivenciou, como um militante, as circunstâncias do achamento e da colonização do Brasil.

Aditando, aqui, um componente ficcional, ou uma realidade surreal, alegoria e alusão ao que um mestre da peroração barroca já praticou, nos primórdios civilizacionais do Brasil, por um breve momento dando asas à imaginação....

Se Vieira aqui voltasse... Vieira, o “Crisóstomo Português”, o “Payassu” (Padre Grande) dos índios, que falava fluentemente o tupi-guarani (como uma língua geral do Brasil) e o quimbundo (língua largamente articulada entre os negros de Angola, que foram escravizados); e assombrando-se diante de uma provável constatação ... encontrar no mundo semelhantes percalços e injustiças que tanto vivificaram os seus célebres Sermões, talvez retomando a arte que o eternizou, atualizasse a sua mensagem, e num breve instante dirigindo-se ao mundo, de modo eloquente bradasse:

Peixes!!! Peixes, não sois!!! Despertai do vosso holocausto, mórbido e insano pesadelo!!! Procurai humanizar e reaprender o vosso caminhar, que é evidência da vossa própria história! Pois, no mar, os peixes regem-se secularmente por sua natureza e atributos; possuem guelras e habitam onde lhes é possível respirar; mas vós... em doentia situação, sequer sabem se têm pés e mãos, estais asfixiados, sem respiração, sem distingüir, pois que vos faltou a razão, vossa condição de ser vivente; vós, homens... não se reconhecendo, entorpecidos, nada vendo... distanciados da vossa aurora e, outrora peculiar humanidade. Sois uma amálgama da vossa ambição, grosseira selvageria que lhes rendeu indigência, inanição, entre vós por tanto tempo praticada! Já nem sabeis vossa procedência... triste e débil deficiência. Diante de Deus, vosso Criador, sois feios na cegueira e num transfigurado torpor. Peixes??? Peixes não sois!!! Homens... esmorecidos e esquecidos, mas... ainda assim, homens; homens, criaturas de um complacente Criador; homens infâmes!!! Mas o sois por destinação suprema... é o que sois... vós o Sois!!!

Diante dos fatos históricos são os achados arqueológicos, em todos os tempos, que permitem a elucidação do percurso, da trajetória, do caminho, da cultura de um povo.

Em plena virada do século, os primórdios da realidade colonizadora brasileira torna-se objeto de redescoberta na (pós) modernidade. Ciência e mídia operam de modo complementar à construção e à difusão do conhecimento que a sociedade contemporânea compartilha. Fundamental é o caráter elucidativo! E igualmente importante é o alcance da mensagem, da informação, sem espetacularização. Um discernimento que reflita uma consciência - amadurecida - impõe-se ao cidadão diante da tarefa cotidiana de “filtrar” a variedade e o volume de “produtos” da indústria cultural. É um exercício diário de apropriação da realidade, a fim de dissociá-la dos possíveis simulacros, do falso conhecimento, da ilusão do “olhar” diante de arquetípicas notícias ou noticiosos.

Contextualizando: pensar o surgimento do Brasil no momento das ações expansionistas ultramarinas européias implica em lidar com fatos, fontes de autoridade, relatos ou narrativas, com a exigência da leitura crítica do processo. Portanto, não se trata, aqui, de legitimar um apelo comemorativo tão intensamente veiculado pelos meios de comunicação, mas de aproveitar a oportunidade do “alardeamento” massivo, para operar sobre o objeto ou núcleo noticioso com um aprofundamento analítico, apoiando-se em recursos legítimos de pesquisa e sistematizações científicas.

O balizamento que se busca tem uma intenção avaliativa e de elucidação, longe da ribalta sensacionalista do fato noticioso - este, altamente mobilizador da população para festejos, mas que ainda não realiza, com idêntica intensidade, o fenômeno da conscientização, do desnudar de aspectos da ocorrência histórica com sua malha estratégica a fim de estabelecer o debate sobre fatos, relatos e controvérsias.

A predominância dos fatos na historiografia de colonização e evangelização, ou catequese, permite chegar a um conhecimento emancipador, mais aproximativo ou fidedigno da controvertida história da expansão atlântica e da intencionalidade do descobrimento do Brasil. Cuja fundamentação da conquista foi a sujeição escravizadora.

Versões enraizaram-se no curso da educação formal, com a literatura, a docência, a narrativa oral desde as primeiras noções e questões apresentadas no desenvolvimento curricular.

Entretanto, o desvelamento de diferentes ângulos da ação colonizadora com o exame crítico dos reflexos até os dias atuais impõe que se investigue num modo, dito, transversal, com interpenetração dos fatos - cenário histórico emoldurado geograficamente pela conquista e integração do mar, o Atlântico, numa rota comercial a projetar interesses já de feição capitalista no modo europeu de concepção.

Personagens emergentes de um novo sistema econômico e político: monarquia nacional centralizadora, burguesia mercantil, fidalguia política cooptada por interesses patrimonialistas, coalização sócio-econômico-política entre realeza - aristocracia feudal decadente - novos ricos num “Estado, ainda, autocrático e metropolitano” de conquista de privilégios em meio a efervescência de formação de centros comerciais. Mas que se afirma e confirma no curso histórico subseqüente, é o “investidor e operador do comércio colonial”, a burguesia mercantil.

A carta de Pero Vaz de Caminha a D. Manuel é um documento dissipador da “dúvida” da intencionalidade. Descreve a nova terra, a Terra de Vera Cruz, a sua pujança natural e aponta a presença dos habitantes encontrados, sem denotar uma “eufórica surpresa” diante de uma descoberta, identifica-se (de modo mais evidente) um entusiasmo diante da grandiosidade (sobretudo, territorial) do novo continente e da “promessa” potencial, que parece antever.

Situar o Brasil na América e a presença estrangeira (além dos portugueses e dos espanhóis) - francesa, holandesa, inglesa, dinamarquesa, sueca... - na nova rota oceânica, distanciada do antigo sistema comercial mediterrâneo, significa ampliar a percepção do fenômeno dos “astros peninsulares” e sua liderança mundial: geograficamente estavam melhor situados para o investimento na empresa co lonial, sem, contudo, perder de vista a disputada opulência das especiarias das Índias. A política marítima fomentada, fortemente, depois do séc. XV revoluciona e transforma a Europa.

Expansão, revolução, crise política... inúmeros movimentos marcam a complexidade da história da civilização ocidental. A fragilidade das instituições temporais reflete o modo conquistador, dominador e competitivo do homem. A “face” do episódio da conquista e colonização do Brasil não poderia deixar de apresentar a cultura dominante da época. A fragilidade diante de uma ação de domínio, é o reconhecimento da força do poder exercido.

Ascensão e declínio, hegemonia e divisão, formação e inculcação, inúmeros binômios poderiam ser enumerados e usados para recontar a história... e são! Mas a história continua, pois ela é contextual, conjuntural, espacial... diante da realidade do Brasil e do mundo, hoje, como num filme, o sentimento de proximidade do passado parece ser forte! Algumas reconfigurações: novos atores, legendas, cenários e temáticas, mas a sensação que revolve o modo de reflexão é a de que...“já vimos este filme”!



Bibliografia:

AQUINO, Rubim S. K. Leão de et al. História das Sociedades: Das Sociedades
Modernas às Sociedades Americanas. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1983.

DANTAS, J. e TEIXEIRA, Francisco. Estudos da História do Brasil. SP, Moderna, 1971. V.¹
NEVES, Luiz Felipe Baeta. O Combate dos Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios.
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PAIVA, José Maria, Colonização e Catequese. SP, Cortez, 1982.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A Formação e O Sentido do Brasil. SP, Companhia
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______________ . Confissões. SP, Companhia das Letras. 1997.

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa, Portugália, 1938-50 v.1-10.

SOARES, Ismar de O. Do Santo Ofício à Libertação: O Discurso e a Prática do Vaticano e da Igreja Católica no Brasil Sobre Comunicação Social. SP, Paulinas, 1988.

VIEIRA, Padre Antonio Vieira. Sermões Escolhidos. In. Maria das Graças Moreira Sá. Lisboa, Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, 1979.



Angela de Faria Vieira
Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Mestre em Estudos Sociais Brasileiros (ISEBI/UERJ) e Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Membro do Núcleo de Comunicação e Educação da ECA/USP. Criou a Revista LOGOS, na FCS/UERJ e a CONTATO: Revista Brasileira de Comunicação, Arte e Educação. Foi coordenadora de Teorias da Comunicação do Departamento de Comunicação Social da Universidade Gama Filho.

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