31.01.2011 - O Globo - Segundo Caderno - P. 5 - Sylvio Fraga Neto - Um termo a ser abolido do vocabulário cultural brasileiro. (COMENTADA)

O Brasil é um eldorado para o jovem historiador de arte. Mas ele não sabe disso. Nem, portanto, seu professor. Temos muitos pintores maravilhosos cujas obras e vidas nunca foram estudadas com qualquer grau de profundidade. Nos Estados Unidos, alunos de pós-graduação sofrem para dizer algo original sobre um bom pintor da terra deles. Aqui, acreditem se quiserem, podemos a qualquer instante ser autores inaugurais de um excepcional artista que morreu há cem anos. Em sua autobiografia, o comediante americano Steve Martin disse que seu sonho é entrar numa loja de antiguidades e esbarrar num Winslow Homer não descoberto; sonho praticamente impossível. No entanto, aqui no Brasil é comum encontrar nossos Winslow Homers encostados em cantinhos de casas de leilão, acumulando poeira. É uma delícia soprar essa poeira.

Sobrevivendo com antiga e conhecida dificuldade, temos instituições dedicadas ao incentivo e à preservação de nosso patrimônio artístico. Infelizmente, no meio cultural, essas instituições têm sido denominadas “equipamentos culturais”. Chamar um museu, uma biblioteca , um Teatro Municipal de “equipamento cultural” é uma perda de rumo do amor à arte frente à categorização ignorante da cultura. Equipamento cultural pode ser uma caixa de som, um telão, um telefone. Veja a lista de qualquer almoxarifado museológico e você encontrará muitos equipamentos culturais. Mas num país que ainda hoje dá ao jovem historiador inacreditáveis possibilidades de importante pesquisa inédita – há muitas décadas penduradas nas salas dos principais museus do país – “equipamento cultural” não chega a ser um susto.

O mau exemplo vem de cima, dado pelo governo. O termo já consta do novo Plano Nacional de Cultura; do vocabulário dos secretários de Cultura e dos portais de suas secretarias. É uma expressão sintomática da forma pela qual o Estado durante 20 anos repassou o poder decisório de investimento em cultura à sociedade: incentivo fiscal com 100% de abatimento em imposto de renda. Isso desestimulou o mecenato, conceito tão fragilmente inserido nos costumes de nossa elite. A falta de mecenato, em sua origem, de alguma forma se alinha com a ideia de chamar um museu de equipamento. (Aliás, financiar um livro com 100% de desconto em imposto de renda não é mecenato, ao contrário do que dizem patrocinadores em prefácios). Em vez de, por exemplo, focar mais no fortalecimento das nossas instituições de cultura, que podem dialogar com a sociedade e contribuir com sua educação de forma democrática e estruturada, o Estado indiretamente permitiu que departamentos de “marketing cultural” de empresas tomassem decisões de investimento nacional em cultura.

Bancos, por exemplo, são apropriadamente chamados de instituições financeiras. No entanto, eles começam e acabam, mudam de nome, vão à falência etc. A arte atravessa séculos de governos, guerras, revoluções e crises financeiras; museus, teatros e bibliotecas são instituições da Humanidade. O Brasil precisa dar a esses símbolos de sua cultura o status de símbolo e não diminuí-los a meros equipamentos. Alguém ousaria chamar o Louvre – aberto ao público em 1793 – de equipamento? Pois bem, uma exposição numa instituição brasileira de cultura vem carregada de história da arte de nosso país. Uma exposição num equipamento cultural vem carregada da linha de montagem do pensamento pequeno em relação à nossa arte e a nossos costumes.

Sylvio Fraga Neto é poeta, compositor e crítico de arte.

COMENTÁRIO:

Parabéns a Sylvio Fraga Neto por este excelente artigo publicado em O Globo.

Não poderia concordar mais com um texto. A argumentação do autor, desde a "nomenklatura" pela qual perpassa a ideia de que "a cultura é um bom negócio", de triste memória, até o desvendar desse tal de "mecenato" a 100% do dinheiro público (que o ex-ministro achava "dinheiro ruim").

Pesquisador com interesse em gestão cultural, empreendi a primeira tentativa acadêmica de compreender o "marketing cultural", ratificando que 9 em 10 das ações assim denominadas não passam de promoção de marca - de empresas e produtos/serviços - com dinheiro público -, ou seja, total absurdo.

Desde o início, quando comecei a pesquisar sobre o tema (meu doutorado na USP durou de 1996 a 1999), minha intenção era muito mais desvelar os - onipresentes - instrumentos do marketing para criadores; artistas e grupos artísticos, além dos gestores de instituições culturais.

Aluno que fui de um pioneiro do marketing no Brasil (cujo livro "Marketing Básico" não tem um termo sequer em inglês para explicar a "coisa"), ainda labuto na linha do esclarecimento de que se "o artista quer ir aonde o povo está", ou se os centros de cultura precisam atrair mais público, "formar plateia" etc. é preciso que o nosso "povo", o povo da cultura, não tenha preconceito com esse conjunto de técnicas que podem, sim, contribuir para que atinjam seus objetivos de sobrevivência e - quem sabe até - de grande exposição pública (desejo legítimo de alguns).

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