13.10.2005 - O Globo - Segundo Caderno - Rodrigo Fonseca - O pessimismo impera no coliseu.

Cara de Coliseu o Teatro Ziembinski não tem. Mesmo assim, suas instalações atendem bem às maquinações romanas de Fausto Fawcett. Com as sobras da costela samba-funk com que criou a Godiva do Irajá Kátia Flávia, há quase 15 anos, o poeta, jornalista, músico e escritor, que já se encontra na casa dos 48 de idade, está arrematando uma babel teatral chamada “Cidade vampira”. Esse é o título de seu texto de estréia como dramaturgo, elaborado a quatro mãos com o diretor Henrique Tavares para provar que resquícios da Roma dos césares regem a alma carioca. Isso não quer dizer que a tradicional casa de espetáculos teatrais tijucana, onde a peça entra em cartaz amanhã, às 20h, vá receber tigres virtuais como os que Ridley Scott usou em “Gladiador” nem ser invadida por atores com a cara do Peter Ustinov, imitando Nero como no filme “Quo Vadis”.

Mas quando as Valquírias 666, um coro de louras (você não esperava algo diferente de Fawcett, esperava?) formado por Cecília Hoeltz, Piti Walter e Renata Davies, destilarem cinismo para pontuar a história da patricinha patricida Suzane (vivida por Carla Faour), acusada de tramar o assassinato dos pais, o caos romano vai se materializar no palco. É o que Fawcett espera.

— Eu sou romano. Eu estava lá. E o excesso romano está aqui. O excesso é o tempero das grandes cidades. É ele que leva a gente a ver o ser humano como uma equação de gozo e destruição apesar de que, nos últimos anos, a gente virou um bando de veadinhos Pokémon, querendo evolução e se submetendo àquela batatinha cristã assada em culpa e covardia — diz Fawcett mostrando seu grau de devoção à hóstia sagrada, ao definir “Cidade vampira” como uma grande gozação. — A fé hoje virou uma patologia. É mais bioquímica que moral. Espero o dia em que vão dizer que a fé equivale a 20 miligramas de desesperol.

“Não existe essa de engajado, todo artista é anti-social”.

Dirigido por Henrique Tavares, mais conhecido pelas montagens de “O que não tá no gibi” (1996) e de “Bárbara não lhe adora” (2000), Fawcett divide os créditos pela direção musical da peça com duas de suas Valquírias, Renata e Piti. E demonstra confiança no que compôs.

— Eu me atrevo a dizer que o espetáculo está cheio de hits.

Tavares atesta:

— As música servem para peça e para serem escutadas no carro, durante um engarrafamento.

Se a peça causa esse efeito ou não, só quem pode garantir é o público, que tem até 6 de novembro para ver o compositor de “Rio 40 graus” e “Balada do amor inabalável” perder sua virgindade teatral. Para os incautos, Fawcett defende que “Cidade vampira” pode até ter conservado a mesma ironia de shows que o consagraram como “Império dos sentidos” e “Básico instinto”, mas não a mesma selvageria.

— “Básico instinto” seguia uma temática de teatro de revista samba-funk. Aqui é diferente. Bom, casou de ter um coro de louras. É que eu gosto de louras. Aliás, espero algum dia abrir uma ONG, ou melhor, uma Xong : As Lourinhas do Amanhã, com a qual seria possível falar no número 0800-666 — diz, mostrando as diferenças entre o Fawcett de ontem e o de “Cidade vampira”. — Vai haver diversão, mas sem a barbárie de antes. Na época do “Básico...”, o efeito que a gente provocava era o de Gengis Khan chegando numa nova cidade.

Co-autor do texto, Tavares, que usa o teatro para discutir os efeitos do pop no imaginário cultural, sempre achou que a poesia de Fawcett sobre a balbúrdia urbana pertencia ao palco. E concorda com ele que a melhor forma de entender “Cidade vampira” é descrever a saga da macbethiana Suzane como a “crônica contemporânea do fantástico show da morte”.

— Não estamos fazendo teatro para trazer boas novas. Usamos um crime para falar do nosso tempo e divertir as pessoas com isso. Sem moral.

À beira de completar meio século de existência, Fawcett diz que o tempo o deixou mais cético e mais descrente no papo de arte engajada.

— Não existe essa de engajado. Todo artista é anti-social. A gente faz parte do Coliseu. Vivendo, a gente fica mais perto da eternidade e percebe que a Humanidade comete sempre o mesmo erro: desafiar a morte. Por isso as pessoas ficam se agarrando a certas coisas, sem admitir que morreu, acabou. É apagar a TV. Vejo as coisas com pessimismo, sim. Mas um pessimismo festivo.

Os deslizes na política brasileira alimentaram bastante o pessimismo de Fawcett. O referendo pelo desarmamento, marcado para o dia 23, também entrou nesse pacote.

— Essa eleição é mais uma fuga do que está acontecendo na política. Plebiscito só transforma a questão num Fla-Flu. Por que não se propõe o seguinte plebiscito: Vamos todos nos suicidar? Sim ou não. Esse é o plebiscito certo para a Humanidade. O resto é espetáculo na mídia. E a mídia virou uma espécie de quinto elemento que só faz saciar nosso sentimento-coliseu.

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