21.09.2014 - O Globo - Opinião - P. 19 - Autor Cacá Diegues - O programa audiovisual

O programa audiovisual

A excessiva e exaustiva burocracia brasileira tem sido a inimiga número um dos produtores


Mais de 80 cineastas brasileiros de todas as regiões, gerações e tendências acabam de produzir, assinar e distribuir uma carta aberta aos candidatos à Presidência da República, com um programa para o setor audiovisual do país.

Desde a criação da Lei do Audiovisual, em 1993, a atividade voltou a crescer, com o apoio dos setores culturais dos governos que sucederam ao de Itamar Franco. A produção anual passou de quatro filmes em 1994, para 29 em 2002, e 129 no ano passado. Uma produção irrigada por uma diversidade cada vez mais representativa da multiplicidade nacional.

A participação do audiovisual no PIB do país é hoje de 0,46%, valor superior ao da indústria farmacêutica, por exemplo. A atividade gera renda, emprego, tributos e valores agregados acima da média das atividades econômicas do país. Recentemente, pesquisa da Motion Pictures Association na América Latina (MPA-AL), corporação que representa os estúdios de Hollywood no subcontinente, registrou que a indústria do audiovisual injeta cerca de 19 bilhões de reais por ano na economia brasileira, gerando mais de cem mil empregos diretos e cerca de 120 mil indiretos.

Para isso, foi decisiva a criação da Ancine (Agência Nacional de Cinema), em 2002. Ou a lei de 2006, que instituiu o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). A lei de 2011, estabelecendo marco regulatório que garantiu a presença da produção nacional na TV paga. A de 2012, referente ao programa Cinema Perto de Você, oferecendo crédito subsidiado a exibidores (de 1.600 salas de cinema no fim do século 20, chegamos hoje a 2.700 — e ainda precisamos expandir essa rede). A articulação federativa da política audiovisual, através de editais conjuntos com 18 governos de estado e 19 prefeituras de capitais (hoje, o cinema brasileiro não é mais feito apenas no eixo tradicional de Rio e São Paulo, mas também em Pernambuco, Ceará, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, por quase todo o país).

O principal agente dessas transformações tem sido a Ancine, criada no governo Fernando Henrique Cardoso e tornada reguladora, fiscalizadora e fomentadora da atividade pelos governos subsequentes de Lula e Dilma. Esse papel vem sendo exercido por uma nova geração de gestores culturais formada no audiovisual, à frente da Ancine, Riofilme, Secretaria do Audiovisual, CTAV, SPCine. Mas, além de avançar, é preciso corrigir distorções geradas ao longo do processo.

A excessiva e exaustiva burocracia brasileira tem sido a inimiga número um dos produtores de audiovisual. Por causa dela, empresas produtoras perdem recursos com a paralisação de suas atividades, prejudicando sobretudo os menos poderosos. Além de enlouquecer os agentes da atividade, a burocracia ajuda os filmes a se tornarem mais lentos e mais caros, perdendo o timing de produção e distribuição. A Fazenda precisa também parar de contingenciar os recursos do Fundo Setorial do Audiovisual para fazer superavit primário às custas do sacrifício da atividade. Esses recursos não são uma doação do Tesouro ao cinema nacional; eles são fruto da própria economia cinematográfica.

A diversidade do nosso cinema não está apenas no estilo de cada filme, mas também no cruzamento desses estilos. Filmes como “Central do Brasil”, “Auto da Compadecida”, “Carandiru”, “Dois filhos de Francisco”, “Chico Xavier”, “Tropa de elite” e outros têm produzido rendas iguais ou superiores às das comédias urbanas consagradas. Por outro lado, no último Festival de Paulínia, dos nove filmes em competição, seis eram de realizadores estreantes, fenômeno que se repetiu depois em Gramado e vai se repetir agora no Festival do Rio.

Para cada comédia urbana desprezada pela academia e pela crítica, temos a oferecer a luz artística de filmes como “O som ao redor”, “Tatuagem”, “Getúlio”, “Praia do Futuro”, “O lobo atrás da porta”, “Hoje eu quero voltar sozinho” e tantos outros. Menos de 20 anos depois de seu sucesso popular desprezado pelos intelectuais da época, as “chanchadas” dos anos 1940 e 50 já se haviam tornado assunto de ensaístas respeitáveis, como Paulo Emilio Salles Gomes, Alex Viany e Sergio Augusto, a mostrar como aqueles filmes eram fundamentais para a compreensão do nosso povo, aquele que os escolhia. Não quero ter que esperar 20 anos para gostar de Leandro Hassum.

Cabe ao Estado respeitar o gosto popular e protegê-lo; assim como lhe cabe dar condições para que se exprimam os que se oferecem como alternativa a esse gosto e desejam mudá-lo. A experiência e a inovação não são apenas um êxtase de mentes previlegiadas, mas também uma contribuição da arte ao futuro do comércio. Estaremos maduros para entender o mundo à nossa volta, quando entendermos que as atividades humanas, por mais opostas que pareçam ser, podem e devem coexistir. Quando entendermos que a arte e o entretenimento são produções do mesmo imaginário humano, e portanto necessidades de toda sociedade.

Cacá Diegues é cineasta




Fonte: http://oglobo.globo.com/opiniao/o-programa-audiovisual-13997011

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