16.03.2011 - O Globo - Segundo Caderno - P. 2 - Francisco Bosco - A ideia de maldito.

No campo da arte, o adjetivo “maldito” é uma dessas palavras que vão sendo usadas sem que ninguém se dê o trabalho de parar para destrinchar e iluminar a trama de significados de que são feitas. Esses significados, mais ou menos obscuros, mais ou menos equívocos, acabam muitas vezes produzindo um álibi, que em nada contribui para a justa compreensão dos fenômenos da arte e do artista. Devemos então submeter essa palavra a uma análise propriamente filosófica: o que afinal está dito e implicado quando se nomeia um artista como maldito?

Podemos começar a avaliar a extensão dos equívocos por um exemplo caricato. Há uma canção de Zeca Baleiro chamada “Maldição”, cujos versos afirmam: “Baudelaire, Macalé, Luiz Melodia,/ Waly Salomão, Itamar Assumpção/ O resto é perfumaria”. De um lado, portanto, os malditos; de outro, os não-malditos, que são “perfumaria”. Os malditos são autênticos, são de verdade; os demais são inautênticos, inessenciais, logo falsos (há uma metafísica encerrada nessa metáfora da perfumaria). De onde vem, entretanto, a ideia de que os malditos são autênticos?

Aqui chegamos no núcleo problemático da palavra. É que o adjetivo maldito é formado pela sobreposição de dois planos heterogêneos: o ético e o artístico. Esses planos se cruzam, sem dúvida, mas não se confundem. O artista maldito é aquele que não é reconhecido pela sociedade, que não goza, ao menos em vida, de prestígio e sucesso junto à cultura. É nesse lugar apartado que se desenvolvem sua vida e obra, com os sofrimentos inflingidos pela não aceitação social. Essa opacidade recíproca entre artista e sociedade é então nomeada, metaforicamente, de maldição: como se o nome do artista fosse amaldiçoado, como se pesasse sobre ele um estigma irrevogável (de solidão e incompreensão).

O significado de autenticidade daí derivado se origina de uma base verdadeira. É que a arte nunca pode ter o compromisso prévio de afirmar a ordem, o status quo, os princípios racionais e controladores das pulsões que fazem com que uma sociedade se mantenha em funcionamento. A arte é sempre potencialmente transgressora, por revelar o lado obscuro da cultura, as pulsões explosivas, tudo aquilo que em toda sociedade existe e insiste como uma ameaça, alegre e trágica, à sua própria paz. É esse desrespeito fundamental ao funcionamento ordeiro da sociedade que está no horizonte da expulsão dos poetas da República de Platão. E é também por isso que sociedades totalitárias quaisquer não suportam artistas, como demonstra o destino desses no nazismo ou no stalinismo.

Temos condições de enxergar agora o raciocínio implícito, ativo embora informulado, no adjetivo maldito: se a arte não pactua com o status quo, e o artista maldito é “expulso” pela sociedade, então isso é uma prova irrefutável de sua autenticidade. Correto? Não necessariamente, e é nessa brecha que se coloca o álibi.

Um artista pode ser maldito porque sua obra e persona social são incompatíveis com o gosto predominante ou as exigências de convívio social. Isso, no entanto, ainda não faz dele um grande artista. Um grande artista, por sua vez, nunca será obediente à sociedade, mas sua obra e persona social não precisam necessariamente estar em desacordo inconciliável com a sociedade. Há aqui um desencaixe que, solapado, abre caminho para a fórmula-álibi: todo artista maldito é superior porque é maldito.

A afirmação não resiste a rápidas evocações. Lima Barreto foi um escritor maldito. Pobre, rejeitado socialmente, complexado racialmente, assediado pela loucura. Foi um grande escritor. Mas não maior que seu contemporâneo Machado de Assis, também ele de origem modesta, mulato, mas cuja obra, altamente transgressora, contendo verdades inconfessáveis sobre a formação social do Brasil, foi bastante aceita socialmente, bem como a persona social de Machado, que abriu caminho rumo a um alto prestígio. Do mesmo modo, Rimbaud é maldito: aos 21 anos já tinha revolucionado e abandonado a poesia, partiu para a África, traficou armas, teve uma perna amputada e morreu jovem. Sua poesia, no entanto, inaugura uma vertente de poesia autorreferente (“As Iluminações”), que hoje em dia muitos taxam de alienada.

Não é por acaso que Bataille inicia seu livro “A literatura e o mal” com um ensaio – magnífico – sobre Emily Brontë. A autora do clássico “O morro dos ventos uivantes” nunca saiu do Presbitério inglês onde foi criada e morreu aos 30 anos. Seu romance, entretanto, soube revelar o mal como só as maiores obras de arte de todos os tempos. E é ainda um livro presente em coleções de clássicos da literatura vendidos em bancas de jornal.

Faz ainda parte do pacote confuso do adjetivo “maldito” certo anti-intelectualismo, certa valorização da irracionalidade e até da espontaneidade. Provavelmente porque a racionalidade é um dos princípios fundamentais das nossas sociedades. Mas se deve advertir que ignorância e espontaneidade podem até produzir maldições, mas não produzem boa arte. Waly Salomão, citado na canção de Zeca Baleiro, era leitor de Wallace Stevens e João Cabral, e considerava o poema “uma festa do intelecto”. Jards Macalé, no ótimo documentário sobre sua trajetória, “Um morcego na porta principal”, quando questionado sobre o rótulo, não hesita: “Maldito é a mãe”.

Devemos sempre desconfiar dos álibis. Eles são prova de fraqueza. O fracasso não é garantia de autenticidade artística, nem o sucesso o é de inautenticidade. Não é a maldição que faz um grande artista – é a obra.

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