22/09/2002 - O GLOBO - Paula Autran - Acesso à cultura: uma novela que ainda está longe do final feliz

Setor ainda carece de investimentos e maior parte das produções vem sendo realizada a partir de incentivos previstos nas leis Rouanet e do Audiovisual

Num país em que, para cerca de 90% da população, cultura é o que chega pela tela da TV, incentivar a indústria do setor e democratizar o acesso aos bens culturais continuam rendendo roteiro para uma novela que parece não ter fim. Embora leis de incentivo fiscal para os patrocinadores de projetos deste tipo tenham se tornado o grande instrumento de investimento em cultura no país - dos R$ 2,4 bilhões investidos entre 1996 e 2001, R$ 1,6 bilhão vem das leis Rouanet (de 1991) e do Audiovisual (1993) - produtores e consumidores permanecem insatisfeitos e longe de um final feliz.

- O problema é que estas leis favorecem o investimento na indústria, não no desenvolvimento social da cultura. A maior parte do dinheiro vem para a região sudeste (69%) e é aplicada em projetos de entretenimento e diversão - explica Leonardo Brant, presidente do Instituto Pensarte.

O Pensarte é um centro de estudos voltado para a articulação do setor cultural que acaba de elaborar o Manifesto por uma Cidadania Cultural, uma pauta de 18 itens para guiar o futuro presidente do Brasil para a democratização do acesso à cultura.

- Em 2001, uma única empresa, a holding Petrobras, teve 69% do orçamento realizado pelo Ministério da Cultura. E, embora utilize dinheiro público, o investimento é feito com a ótica do mercado. O que é errado. Este dinheiro não é para vender petróleo - reclama Brant.

Produtores caçam recursos

Por estas e por outras, há cinco anos a roteirista Flávia Lins e Silva, os diretores Vinícius Reis e Eduardo Vaisman, a montadora Ana Teixeira e o produtor Aílton Franco Jr. Realizam verdadeiras ações entre amigos para conseguir tornar seus projetos realidade. Desde 2000, eles tentam finalizar o documentário "O vício da liberdade - a trajetória de Evandro Lins e Silva", sobre a vida do jurista e a história da Justiça no país.

Depois de dois anos tentando captar recursos, conseguimos o apoio de um fundo holandês e uma parceria com o canal GNT para preparar dois programas de 26 minutos cada, para serem exibidos pelo canal. Mas para transformá-los em longa metragem, precisamos receber o prêmio de R$ 50 mil do "Procine", do governo do estado, que ganhamos no ano passado, mas não nos foi entregue até hoje - conta Aílton, emendando outra reclamação: - Acho maravilhoso a Fernanda Montenegro ganhar um patrocínio da Brasil Telecom para ler textos teatrais, como li esta semana no jornal, mas um monte de gente menos conhecida com bons projetos não consegue ir em frente. A cultura acabou ficando relegada ao que os diretores de marketing das empresas querem.

- Enquanto isto, trabalhamos de graça e temos dívidas com o Rio inteiro. Usamos câmera alugada de alguns amigos para os quais ainda não pagamos e estamos finalizando os programas numa ilha de edição emprestada por outros amigos. É uma gincana fazer cinema no Brasil - completa Flávia, neta de Evandro.

Investimento no setor é tímido

Mais do que dançar, Duda Maia e as outras quatro bailarinas de sua companhia - a Trupe do Passo, que trabalha com pesquisa da cultura brasileira - também precisam fazer uma verdadeira ginástica para montar um espetáculo. O mais recente, "Matulão", ganhou um prêmio público de R$ 50 mil em outubro do ano passado, mas a última parcela, de R$ 10 mil, só foi depositada na semana passada, depois de sete meses de espera.

- Estamos sempre correndo atrás de prêmios e patrocínios, principalmente do governo. Muitas vezes trabalhamos de graça e, como a companhia não é grande, quando entra um dinheiro é mais fácil pagar as dívidas - conta Duda, numa das salas emprestadas em que costuma ensaiar com a trupe. - E a situação já melhorou muito. Hoje há mais incentivos e patrocínios. Houve época em que viajamos de ônibus para nos apresentar em São Paulo, nos hospedamos em casa de amigos e fizemos supermercado graças a um "patrocínio". Mas ainda precisamos dar aulas ou trabalhar em outras coisas para ter uma fonte de renda fixa.

Luiz Carlos Prestes Filho, pesquisador do Instituto Gênesis/Incubadora de Empresas Culturais e autor de "A Economia cultural - a força da indústria cultural no estado do Rio", estima que os governos (federal, estadual e municipal) invistam por ano no Brasil cerca de R$ 800 milhões em cultura.

- É muito pouco para um país como o nosso. Por outro lado, a cultura é um negócio que movimenta cerca de R$ 10 bilhões por ano. O governo precisa entender esta demanda e investir no potencial e na infraestrutura do Brasil para que o povo possa consumir cultura - observa ele, para quem o estado brasileiro não identifica a cultura como atividade econômica. E isso embora, segundo suas pesquisas, esta indústria cultural esteja em sexto lugar em arrecadação no estado do Rio. De acordo com Luiz Carlos, em 1999 as empresas ligadas à cultura (o que inclui gravadoras, editoras e empresas de TV) recolheram em ICMS R$ 429 milhões contra R$ 311 milhões da metalúrgica, por exemplo. Mas ele também detecta outro problema: - A produção cultural está mal articulada. Produtores como os de cinema continuam fazendo projetos a fundo perdido porque não há mercado. Só 5% das cidades brasileiras têm cinema. Está certo que o poder público não pode ficar criando salas de cinema, mas pode incentivar os empresários a fazer isso. O mesmo se aplica a outras áreas culturais.

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