07/05/1997 - Veja - Além do dinheiro. Celso Masson.

“Recursos para a cultura explodiram, mas a questão é saber se estão no melhor lugar. Ocorreu o milagre da multiplicação de recursos na cultura brasileira. Estimuladas pela Lei Rouanet, de 1991, e pela Lei do Audiovisual, de 1993, 600 empresas resolveram transformar em investimentos culturais uma parcela do dinheiro que deviam ao Leão. Com isso, as verbas para fazer um filme, bancar uma exposição ou montar um instituto cultural explodiram. Em 1992, a renúncia fiscal do governo mal passou de meio milhão de dólares. No ano passado foi de quase 100 milhões de reais e estima-se que chegará a 120 milhões em 1997. Essa soma segue sendo pequena por qualquer critério - na França, apenas os recursos oficiais destinados ao cinema são sete vezes maiores - mas aquilo que se vê na paisagem cultural do Brasil é a prova, definitiva, de que faltava dinheiro para nossos museus, nossos artistas, nossos cineastas . . . o cinema, ex-moribundo, acumula uma produção de 22 filmes em 1996. Os festivais de jazz, as temporadas de música clássica se multiplicaram. Ao mesmo tempo em que fez aparecer frutos saborosos, a nova legislação trouxe à luz dificuldades amargas. Não faltam verbas para músicos internacionais de primeira linha - mas as orquestras locais seguem à míngua. Pôde-se ver Pablo Picasso na Bienal, mas no país inteiro ainda há 3.000 municípios sem biblioteca. Também se observam situações estranhas. Empresas que, no passado, investiam em shows e espetáculos culturais como parte de sua estratégia de propaganda seguem fazendo o mesmo tipo de coisa - mas agora podem abater o gasto no imposto de renda”.

“Onde está o problema ? Na lei, naquilo que prevê, naquilo que omite e naquilo que não é fiscalizado. As pessoas se emocionam ao ouvir falar em verba para a cultura, mas é bom não esquecer que estamos tratando do dinheiro público, de dinheiro que o governo deixa de receber e, em tese - pelo menos em tese - poderia ir para a merenda escolar, para a enfermaria do hospital da periferia. A legislação entregou às companhias privadas a tarefa de gastar dinheiro com a cultura e depois abater no imposto de renda. Como é natural para quem trabalha com a lógica do mercado econômico e sua para receber cada centavo, as empresas investem naquilo que dará maior retorno, se não em dinheiro, pelo menos em imagem. Por isso não faltam - ainda bem - recursos para um festival que atrai uma platéia imensa, expondo em toda parte o logotipo do patrocinador. Mais difícil, contudo, é encontrar quem queira colocar dinheiro num espetáculo folclórico no interior da Bahia, numa escola de piano na Baixada Fluminense. Um defeito da lei é esse: não distingue um investimento cultural de retorno difícil, quase nulo, daquilo que está na fronteira do gasto comercial. A confusão é tamanha que até o programa Gente que Faz, do falecido Bamerindus, conseguiu os benefícios da Lei Rouanet, embora fosse uma estratégia óbvia de publicidade. “O patrocinador quer retorno do investimento tanto em propaganda como em repercussão na mídia. E a arte popular normalmente não proporciona isso”, lamenta Ariano Suassuna, Secretário da Cultura de Pernambuco”.

“Outro dado é regional. Quase 90% dos recursos descontados do imposto de renda foram destinados à Região Sudeste do país - aquela que é menos carente não apenas do ponto de vista social mas também cultural. Dos dez projetos mais caros do ano passado, quatro foram eventos grandiosos, como a Bienal e o Free Jazz, que existiam antes dos incentivos e já não davam prejuízo. Três projetos agregam patrimônio a bancos privados, através de centros culturais e um teatro. Outros três foram restaurações de prédios. Assim se consumiram 35 milhões de reais, mais de um terço dos recursos disponíveis”.

“O Ministério da Cultura dispõe de verbas de 27 milhões de reais, a maior parte vinda da Loteria Federal, para bancar projetos sem bênçãos privadas. No ano passado, foi possível apoiar 242 projetos, como um curso de choro para músicos de Brasília, a edição de um livro sobre a zoologia de Aristóteles escrito por um veterinário de Feira de Santana, a recuperação de um órgão em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul. “A lei brasileira é comparável em eficácia à de outros países, mas está longe de ser uma condição suficiente para que a cultura floresça no Brasil. Seria uma ingenuidade achar que o mercado pode financiar áreas como a música erudita ou museus”, diz Sergio Paulo Rouanet, o criador da lei, hoje embaixador na República Checa.

“Outro caso é o dos institutos culturais. É ótimo que esse tipo de instituição publique revistas, promova cursos, ajude a preservar a memória nacional. Mas, por culpa da lei, e por excesso de boa vontade do governo, nem sempre é fácil saber quando se faz cultura, quando se aumenta o patrimônio, ou as duas coisas. O Banco real está construindo um teatro em São Paulo, para 900 pessoas, ao custo de 6,8 milhões de reais. Desse total 63% saiu do imposto a pagar. Como teatros são locais que vivem lotados, pode-se prever que, dentro de alguns anos, o investimento terá sido pago e dará lucros. Como ficará o Leão ? O Instituto Cultural Itaú foi criado em 1987, sem incentivo algum. Após a lei, o banco gastou 18 milhões de reais para erguer uma nova sede para o instituto. “Cerca de 32% foi abatido através da Lei Rouanet, diz o superintendente Walter Feltran. O Itaú tem um mérito inegável. O instituto é uma operação de marketing - mas ao menos quem vai até lá não paga nada pelos serviços que recebe”.

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