Teoria
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A caminho do marketing cultural de terceira geração

 (2009, segundo semestre)


Manoel Marcondes Machado Neto


Tenho admiração pelo case de sucesso absoluto que é o Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB). Resultados de pesquisa que conduzi na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) de 1995 a 2005 revelaram que cem por cento dos entrevistados não só citam mas também frequentam o CCBB. Não por outra razão lancei ali, em 2002, o meu livro "Marketing Cultural: das práticas à teoria".

Antes de entrarmos na temática do marketing cultural e de sua importância histórica para a imagem empresarial, façamos uma breve reflexão sobre a crise financeira mundial que vivemos nessas últimas semanas.

Trata-se uma ocorrência daquelas que podem suscitar uma quebra de paradigmas e rearranjar instituições multilaterais, não por benesse, mas para a própria sustentação do modo de vida que abraçamos. Aliás, os Estados Unidos e a Europa agendaram para o próximo mês de novembro de 2008 uma “nova” conferência à la Bretton Woods – que em julho de 1944 definiu as regras de gerenciamento das relações econômicas entre os países mais industrializados do mundo.

Hoje, se fala muito de responsabilidade socioambiental, de fair trade (ou comércio justo), de social business (do bengalês Muhammad Yunus, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2006, conhecido como “o banqueiro dos pobres” e considerado o grande mentor do microcrédito destinado aos desfavorecidos de Bangladesh), de consumo consciente de crédito. Invoca-se um capitalismo criativo (ideia recente do agora filantropo Bill Gates) e até um tal dito “capitalismo consciencioso” (o que, para muitos, parece uma expressão desprovida de sentido).

O fato é que a financeirização da economia, descolada do mundo real, nos levou a um beco aparentemente sem saída. A própria Organização Mundial do Comércio (OMC) encontra-se travada – ou até morta, para alguns mais pessimistas. E o seu nó górdio não é somente a barreira imposta às nossas commodities, mas, principalmente (embora pouco noticiada), a parcial recusa dos países emergentes em abrir mais ainda os seus mercados de serviços financeiros (do tipo hipotecário, por exemplo), de mídia e de educação, entre outros. É um problema que atinge todos os que se envolvem na temática da produção cultural, ao lado de outras questões não menos relevantes, como as relacionadas à propriedade intelectual e à pirataria. Quem gerou o viés da financeirização no âmbito da produção cultural foram as leis de incentivo fiscal – hoje mais vício que virtude, mais veneno que remédio, tanto para as empresas quanto para artistas e produtores culturais.

Fui aluno de um pioneiro da pesquisa e do ensino de marketing no Brasil, o saudoso Manoel Maria de Vasconcellos, um divulgador das ideias econômicas, agora tão atuais, de Joseph Schumpeter (1883-1950) – famoso por sua teoria da “destruição criativa”, que sustenta que o sistema capitalista progride por revolucionar constantemente sua estrutura econômica. Assim, consigo vislumbrar por entre as nuvens talvez não o “capitalismo consciencioso”, mas pelo menos um marketing mais genuíno, um capitalismo de mercado (não-financeiro) com mais substância na busca do bem-estar e do pleno emprego (Barack Obama diz que a saída americana para a crise se escreve com quatro letras – “jobs”). É algo que, pioneiramente, o professor Vasconcellos incluiu em sua tese de livre-docência defendida na PUC-Rio em 1977 e publicada pela Conceito Editorial em 2006.

E assim é, para mim, o “marketing cultural” – uma visão de desenvolvimento, um olhar sob outra perspectiva. Não a do patrocinador, mas a do criador, do artista e do gestor cultural. Hoje a visão que preside os negócios é a do cliente, do consumidor, do usuário. A visão do jornalismo que emerge é a do jornalismo cidadão.

A visão da sustentabilidade ambiental não é a dos governos, mas a do cidadão e das organizações da sociedade civil. Por que não mudar, então, o foco da questão do uso do marketing pelo campo da produção artístico-cultural, vendo-o do ponto de vista do criador?

Esta é a questão que está colocada e que tento responder.

Panorama geral

“Temos que dar ao mecanismo fiscal uma estrutura capaz de gerar a tão desejada sustentabilidade da vida cultural do País, para além do marketing e da publicidade”, disse Juca Ferreira, ministro da Cultura, recentemente, em 07 de outubro de 2008.

No Brasil do pós-Segunda Grande Guerra, tempo em que surge a televisão, o rádio ocupa corações e mentes, os jornais diários e as revistas se consolidam, a atividade de patrocínio engatinha. Ela se inicia – como em todo o mundo – pela atitude de setores da elite interessada em autopromoção.

Há exceções: mecenas verdadeiros e filantropos, movidos pelo amor à arte. Podemos citar Francisco ‘Ciccillo’ Matarazzo Sobrinho (fundador do Museu de Arte Moderna de São Paulo em 1948 e da Bienal de São Paulo, em 1951) e Raymundo de Castro Maya (criador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, também em 1948, bem como da fundação que administra o Museu do Açude, em 1964, e do Museu da Chácara do Céu, em 1972).

A regra da aproximação de empresas patrocinadoras à arte e à cultura, no entanto, deu-se por meio da publicidade, com Assis Chateaubriand e Pietro Maria Bardi, que, em 1947, criaram o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e a que viria a ser a Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), e com o Banco do Brasil, que, em 1989, instituiu seu primeiro centro cultural, no Rio de Janeiro.

Breve histórico institucional da cultura no Brasil

Em 1937, com o presidente Getulio Vargas e Gustavo Capanema, adquire status de ministério a então Secretaria de Estado de Educação e Saúde, criada por Vargas em 1930.

Em 1953, ainda com Vargas, juntamente com o Ministério da Saúde, também é instituído o Ministério da Educação e Cultura (MEC).

Em 1985, no governo de José Sarney, cria-se o Ministério da Cultura (MinC), que em 1990, no governo de Fernando Collor de Mello, é substituído por uma Secretaria de Cultura, restabelecendo-se o seu status de ministério em 1992, no governo de Itamar Franco.

Em 2005, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, com Gilberto Gil à frente do Ministério de Cultura, o Congresso Nacional aprova a Política Nacional de Cultura.

Dos incentivos fiscais ao mecenato empresarial

Em 1986, no Governo Sarney, surge a primeira lei de incentivo fiscal à cultura (Lei 7.505/86, conhecida como Lei Sarney). Cria-se o Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas de Natureza Cultural (CNPC), prevendo-se as seguintes modalidades de usufruto de incentivos fiscais: investimento, patrocínio e doação.

Em 1990, o Governo Collor extingue todos os incentivos fiscais, inclusive os previstos para a cultura. Em 1991, ainda sob Collor de Mello, aprova-se a Lei 8.313 (Lei Rouanet). O CNPC deixa de existir, passando a ser protagonista o projeto cultural e não mais a organização que o propõe.

Em 1993, no Governo Itamar Franco, promulga-se a “lei do audiovisual”. Retornam os investimentos e o cinema nacional “renasce”. Iniciativas como a “Coleção Pirelli de Fotografia”, o “Prêmio Nestlé de Literatura” e o “Projeto Aquarius” (Sul América Seguros, em associação com O Globo) são muito anteriores à concessão de qualquer incentivo fiscal. Fazem parte de uma espécie de novo mecenato, em que a figura de proa não é mais a pessoa física, o filantropo, o amante das artes, mas sim a empresa.

É o início do que podemos denominar “mecenato empresarial”, que tem como exemplos típicos também a Fundação Banco do Brasil (1985) e o Instituto Itaú Cultural (1987).

Por outro lado, um certo “resgate” do mecenato individual pode ser visto na Fundação Roberto Marinho (1977) e no Instituto Moreira Salles (1990).

Pressupostos de um marketing cultural

Se hoje se admite uma economia da cultura, evidentemente haverá um mercado da cultura. E, para se estar atuante neste mercado, preconiza-se o exercício competente de um marketing cultural.

O que é marketing cultural?

A atividade deliberada de viabilização físico- financeira de produtos e serviços que, comercializados ou franqueados, venham atender às demandas de fruição e enriquecimento cultural da sociedade.

E como classificar suas práticas?

De acordo com o seu locus/fato gerador. Assim, podem-se considerar quatro tipos de marketing cultural: de meio, de fim, de agente e misto.

O marketing cultural de meio diz respeito a organizações cuja missão não é a produção ou a difusão cultural – bancos, montadoras de veículos, empresas de energia etc. Sua importância para a imagem empresarial verifica-se em diferentes situações, como se pode ver nestes exemplos: na entrada no mercado – Tim Celular; no reforço de imagem – Petrobras; na manutenção de presença comunitária – Cia. Cacique de Café Solúvel (Londrina, PR); e na mudança de marca/conceito – empresa de consultoria Accenture (ex-Andersen Consulting).

O marketing cultural de fim é o realizado por organizações que têm como missão exatamente a produção ou a difusão cultural. Exemplos: Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) e Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp).

O marketing cultural de agente é o que fazem empreendedores artístico- culturais, como uma “iniciativa de risco”, em parceria, ou não, com patrocinadores. Exemplos: a Dell’Arte Soluções Culturais (1982), que desenvolve projetos de música, dança, ópera e festivais; e a Dançar Marketing & Comunicações, criada na década de 1980, como desdobramento da revista Dançar.

Por fim, o marketing cultural misto é o que levam a efeito organizações conjuntamente com patrocinadores, mediante parcerias, coprodução ou fusão de modalidades. É o formato que mais cresce hoje, em função da escassez de recursos oficiais. Podem-se citar dois casos do Rio de Janeiro: o Canecão-Petrobras, voltado à realização de shows artísticos; e o Citibank Hall, que abriga todos os tipos de eventos.

Nove em cada dez iniciativas se inscrevem na modalidade de marketing cultural de meio, ou seja, trata-se de atividades artístico-culturais ligadas à promoção de marcas de produtos, serviços ou organizações, tanto públicas quanto privadas.

Perspectivas para o marketing cultural

É preciso fomentar a filantropia, superando preconceitos existentes contra ela, além de acabar com a praxe dominante de direcionar todos os incentivos aos patrocinadores. E, sobretudo, é necessário fomentar o empreendedorismo na área da produção cultural, apoiando iniciativas (diretamente e por meio de agências como o BNDES), formando profissionais e aperfeiçoando o pessoal já em atividade.

Pioneirismo da UERJ

Na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a formação em Marketing Cultural teve início em 1994, com os cursos de Gestão e Marketing na Cultura (aperfeiçoamento em 180 horas) e de Marketing Cultural: Teoria e Prática (atualização em 75 horas).

Qual tem sido a nossa meta?

Privilegiar as iniciativas de marketing cultural de fim e de agente, capacitando artistas, gestores de espaços e de grupos artísticos no uso, em seu favor, do instrumental de marketing – o que nada mais é que a competência e a habilidade de criar uma proposta
de valor, precificá-la, promovê-la e distribuí-la de maneira ótima, privilegiando o artista, o criador e o administrador cultural, muito mais do que visar ao benefício do patrocinador.

Marketing cultural “de terceira geração”

Por que afirmamos que o marketing cultural chegou a uma terceira geração? Consideramos primeira geração o tempo em que a centralidade do processo estava na organização proponente (Lei Sarney) e segunda geração, o momento em que a centralidade do processo passa para o projeto (Lei Rouanet). Uma terceira geração advirá das modificações na Lei Rouanet, ora em gestação no âmbito do Ministério da Cultura, sobretudo após a ausculta nacional (em seminários municipais e regionais) realizada para a confecção do I Plano Nacional de Cultura.

As razões principais que levam à necessidade de modificações do sistema atual são: o esgotamento da “cultura do projeto eventual” – algo limitado e limitante; a necessária descentralização da distribuição dos recursos (para fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Brasília); e uma evolução natural para a extinção de incentivos fiscais – sempre um recurso
político de duração limitada com o fim de desenvolver determinada área carente de iniciativas.

Considerações finais

Que conclusão tirar quanto ao desenvolvimento do mercado cultural?

A meu ver, fazem-se necessárias ações em duas grandes vertentes

Em primeiro lugar, é preciso atender à demanda, mais do que patente, no que se refere ao estabelecimento de programas e políticas empresariais de apoio à arte e à cultura para além da “cultura do projeto eventual” (sempre de curto prazo) e do uso de incentivos fiscais. Trata-se de adotar o patrocínio pela razão “certa” – o reconhecimento do mérito que uma iniciativa cultural tenha para vir a público.

Em segundo lugar, mas com o mesmo grau de relevância, há que se aumentar o financiamento público da cultura (mínimo de 1% do orçamento federal, como preconiza a Unesco; 1,5% dos orçamentos estaduais; e 2% dos orçamentos municipais), empenhando recursos em programas e políticas de fomento artístico e, mais importante, na fruição da arte e da cultura (ou seja, o incentivo dado ao público, na ponta da cadeia produtiva da cultura), em um meio social ampliado, envolvendo todas as camadas da população brasileira.

(Palestra proferida em 16/10/2008 no XIII Seminário de Comunicação Banco do Brasil - Fatos e reflexões sobre dois séculos de comunicação no Brasil. Publicada nos anais do seminário em setembro de 2009).



Manoel Marcondes Machado Neto
Pesquisador e professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Autor da pioneira tese "Marketing Cultural: características, modalidades e seu uso como política de comunicação institucional" (USP, 1999) e do livro "Marketing Cultural: das práticas à teoria" (Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2a. edição, 2005).

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