Teoria
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Para introduzir os conceitos de aura da obra de arte e de indústria cultural

 (2005, segundo semestre)


Manoel Marcondes Machado Neto (compilação)


Recomenda-se a leitura integral dos livros: Dialética do Esclarecimento, publicado no Brasil por Jorge Zahar Editor e Obra Aberta, de Umberto Eco, publicado no Brasil pela Editora Perspectiva. Ver seção 'Bibliografia Básica' deste site.

Critica-se, com razão, o fato de que, no Brasil das últimas duas décadas - tempo em que pontificaram no campo da produção artístico-cultural as leis de incentivos fiscais à cultura -, a grande maioria daquilo que se “consome” como arte, pelo menos nos grandes centros urbanos, seja-nos imposto pelos departamentos de marketing das empresas patrocinadoras – e que estas adotem apenas aquelas manifestações que “dão” mídia, brindes (livros, CDs e DVDs) e promoção institucional para suas marcas e produtos.

Partindo-se do pressuposto que ninguém que de fato queira atuar no campo do marketing cultural possa fazê-lo sem antes aprofundar seus conhecimentos sobre arte e sobre o processo cultural, é fundamental recorrer a textos clássicos – que, embora muitos queiram taxar de “datados” – são absotutamente indispensáveis para formar-se uma base de pensamento que permita abordar iniciativas, projetos, programas e planos, sejam de origem estatal ou privada, de forma adequada, sem ferir parâmetros universais da coisa artística e do fazer artístico, para muito além da mera eficiência mercadológica e promocional em que o marketing cultural pode incorrer.

É nesse contexto em que estão autores essenciais como Adorno, Baudrillard, Benjamim, Eco, Horkheimer, Marcuse e McLuhan.

É claro que esses pensadores já foram devidamente “deglutidos” e, na melhor tradução antropofágica, “reprocessados” por autores contemporâneos que produzem pensamento e reflexão neste vigésimo-primeiro século, tais como Barbero, Canclini e Habermas entre outros. É contudo insubstituível - sobretudo no caso do Brasil, ainda na pré-história da legislação que abarca a comunicação e a preservação/difusão da cultura, o que nivela-nos com as dúvidas e os medos do primeiro mundo de meio século atrás – conhecer o pensamento original dos pioneiros que discutiram a acachapante influência dos meios de comunicação e das novas tecnologias sobre a arte, a cultura e a forma de pensar de metade da população planetária (a outra metade é excluída desse processo pela sua situação de extrema pobreza).

Com este objetivo foi preparada esta colagem de trechos de textos capitais sobre arte e indústria cultural daqueles pensadores essenciais em um formato delideradamente atrevido, editado como perguntas-e-respostas, mantendo a integridade dos pensamentos oferecidos pelos "pais" da matéria.

Este artifício parece pertinente para instigar o leitor a buscar as obras mesmas, na fonte, o que tem sido um árduo labor no meio acadêmico, posto que a mera sugestão de leitura das obras tem gerado frustração geral entre estudantes e professores por diversas dificuldades: o esgotamento das edições (a indústria editorial – foco aliás do próprio tema – dá preferência a novos títulos/autores que pouco mais fazem além de repetir o já conhecido), o alto custo dos livros e, finalmente, a correta proibição das cópias ilegais (há escolas com mais espaço reservado a reprografia que a biblioteca).

No aspecto da facilitação do primeiro contato com autores e idéias, a internet cumpre, de fato, um papel positivo e é esta a justificativa para a presente compilação, que, de modo algum, substitui o contato direto com os livros e seus autores, fora do ambiente anódino do monitor e do papel A4.

"O QUE É INDÚSTRIA CULTURAL?" ou “a entrevista que nunca aconteceu... mas que podia ter sido assim...” - colagem de trechos dos textos originais.

[Trechos textuais de Theodor Adorno e Max Horkheimer extraídos: (a) do capítulo "Indústria Cultural", da obra de autoria conjunta "Dialética do Esclarecimento" (Dialektik der Aufklärung - Philosophische Fragmente, de 1944, publicada em 1947), na tradução de Guido Antonio de Almeida, em sua segunda edição brasileira (Jorge Zahar Editor) - de 1986 - p. 113-156, (b) da obra de autoria de Umberto Eco "Obra Aberta" (Editora Perspectiva, 1971 - 284 p.), na tradução de Giovanni Cutolo e (c) do artigo de autoria de Walter Benjamim "A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica" (Editora Paz e Terra, 1990 - p. 209-240), na tradução de Carlos Nelson Coutinho; editados como se respostas fossem a “perguntas” da publicação eletrônica TEXTUAL].

Pergunta:

- Como e por que surge o conceito de indústria cultural?

Resposta:

- "O cinema, o rádio e as revistas constituem um sistema. Cada setor é coerente em si mesmo e todos o são em conjunto. A cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança" (a).

- "Até mesmo as manifestações estéticas de tendências políticas opostas entoam o mesmo louvor do ritmo de aço. Os decorativos prédios administrativos e os centros de exposição industriais mal se distinguem" (a).

Pergunta:

- Este é um processo irreversível?

Resposta:

- "Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear. Abandonamos a expressão cultura de massas para substituí-la por indústria cultural, a fim de excluir de antemão a interpretação que agrada aos advogados da coisa; estes pretendem, com efeito, que se trata de algo como uma cultura surgindo espontaneamente das próprias massas, em suma, de forma contemporânea da arte popular. Ora, dessa arte a indústria cultural de distingue radicalmente. A indústria cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores" (a).

- "Os edifícios monumentais e luminosos que se elevam por toda parte são os sinais exteriores do engenhoso planejamento das corporações internacionais. Os prédios mais antigos em torno dos centros urbanos feitos de concreto já parecem favelas, mas os projetos de urbanização que, em pequenos apartamentos higiênicos, destinam-se a perpetuar o indivíduo como se ele fosse independente, submetem-no ainda mais profundamente a seu adversário, o poder absoluto do capital" (a).

Pergunta:

- Não há aí um pessimismo?

Resposta:

- "A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma. Os automóveis, as bombas e o cinema mantêm coeso o todo e chega o momento em que seu elemento nivelador mostra sua força na própria injustiça à qual servia. Por enquanto a técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema social. A passagem do telefone ao rádio separou claramente os papéis. Liberal, o telefone permitia que os participantes ainda desempenhassem o papel do sujeito. Democrático, o rádio transforma-os a todos igualmente em ouvintes, para entregá-los autoritariamente aos programas, iguais uns aos outros, das diferentes estações" (a).

- "Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em encobrí-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmnente produzem. Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos. Todo traço de espontaneidade do público é dirigido e absorvido, numa seleção profissional, por caçadores de talentos, competições diante do microfone e toda espécie de programas patrocinados. Os talentos já pertencem à indústria muito antes de serem apresentados por ela: de outro modo não se integrariam tão fervorosamente. A atitude do público que, pretensamente e de fato, favorece o sistema da indústria cultural é uma parte do sistema, não sua desculpa" (a).

Pergunta:

- A indústria cultural, de fato, já não se insere no portfolio dos grandes grupos controladores de capital de investimento?

Resposta:

- "Se, em nossa época, a tendência social objetiva se encarna nas obscuras intenções subjetivas dos diretores gerais, estas são basicamente as dos setores mais poderosos da indústria: aço, petróleo, eletricidade, química. Comparados a esses, os monopólios culturais são fracos e dependentes. A dependência em que se encontra a mais poderosa sociedade radiofônica em face da indústria elétrica, ou a do cinema relativamente aos bancos, caracteriza a esfera inteira, cujos setores individuais por sua vez se interpenetram numa confusa trama econômica. Tudo está tão estreitamente justaposto que a concentração do espírito atinge um volume tal que permite passar por cima da linha de demarcação entre as diferentes firmas e setores técnicos. A unidade implacável da indústria cultural atesta a unidade em formação da política" (a).

- "Quando um ramo artístico segue a mesma receita usada por outro muito afastado dele quanto aos recursos e ao conteúdo; quando, finalmente, os conflitos dramáticos das novelas radiofônicas tornam-se o exemplo pedagógico para a solução de dificuldades técnicas, que à maneira do jam, são dominadas do mesmo modo que nos pontos culminantes da vida jazzística; ou quando a “adaptação” deturpadora de um movimento de Beethoven se efetua do mesmo modo que a adaptação de um romance de Tolstoi pelo cinema, o recurso aos desejos espontâneos do público torna-se uma desculpa esfarrapada. Uma explicação que se aproxima mais da realidade é a explicação a partir do peso específico do aparelho técnico e do pessoal, que devem todavia ser compreendidos, em seus menores detalhes, como partes do mecanismo econômico de seleção. Acresce a isso o acordo, ou pelo menos a determinação comum dos poderosos executivos, de nada produzir ou deixar passar que não corresponda a sua tabelas, a idéia que fazem dos consumidores e, sobretudo, que não se assemelha a eles próprios" (a).

Pergunta:

- Há “produtos” para todos os gostos nessa indústria?

Resposta:

- “As produções do espírito no estilo da indústria cultural não são mais também mercadorias, mas o são integralmente ... a indústria cultural se transforma em public relations, a saber, a fabricação de um simples goodwill, sem relação com os produtores ou objetos de venda particulares. Vai-se procurar o cliente para lhe vender um consentimento total e não crítico, faz-se reclame para o mundo, assim como cada produto da indústria cultural é seu próprio reclame” (a).

- "O esquematismo do procedimento mostra-se no fato de que os produtos mecanicamente diferenciados acabam por se revelar sempre como a mesma coisa. A diferença entre a série Chrysler e a série General Motors é no fundo uma distinção ilusória, como já sabe toda criança interessada em modelos de automóveis. As vantagens e desvantagens que os conhecedores discutem servem apenas para perpetuar a ilusão da concorrência e da possibilidade de escolha. O mesmo se passa com as produções da Warner Brothers e da Metro Goldwin Mayer. Até mesmo as diferenças entre os modelos mais caros e mais baratos da mesma firma se reduzem cada vez mais: nos automóveis elas se reduzem ao número de cilindros, capacidade, novidade dos gadgets, nos filmes ao número de estrelas, à exuberância da técnica, do trabalho e do equipamento, e ao emprego de fórmulas psicológicas mais recentes. O critério unitário de valor consiste na dosagem da conspicuous production, do investimento ostensivo. Os valores orçamentários da indústria cultural nada têm a ver com os valores objetivos, com o sentido dos produtos. Os próprios meios técnicos tendem cada vez mais a se uniformizar. A televisão visa uma síntese do rádio e do cinema, que é retardada enquanto os interessados não se põem de acordo, mas cujas possibilidades ilimitadas prometem aumentar o empobrecimento dos materiais estéticos a tal ponto que a identidade mal disfarçada dos produtos da indústria cultural pode vir a triunfar abertamente já amanhã – numa realização escarninha do sonho wagneriano da obra de arte total" (a).

- "As distinções enfáticas que se fazem entre os filmes das categorias A e B, ou entre as histórias publicadas em revistas de diferentes preços, têm menos a ver com seu conteúdo do que com sua utilidade para a classificação, organização e computação estatística dos consumidores. Para todos algo está previsto; para que ninguém escape, as distinções são acentuadas e difundidas. O fornecimento ao público de uma hierarquia de qualidades serve apenas para uma quantificação ainda mais completa. Cada qual deve se comportar, como que espontaneamente, em conformidade com seu level, previamente caracterizado por certos sinais, e escolher a categoria dos produtos de massa fabricada para seu tipo. Reduzidos a um simples material estatístico, os consumidores são distribuídos nos mapas dos institutos de pesquisa (que não se distinguem mais dos de propaganda) em grupos de rendimentos assinalados por zonas vermelhas, verdes e azuis" (a).

Pergunta:

- O consumidor é fator de produção até nos seus momentos de lazer?

Resposta:

- "Em seu lazer, as pessoas devem se orientar por essa unidade que caracteriza a produção. A função que o esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber, referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais, é tomada ao sujeito pela indústria. O esquematismo é o primeiro serviço prestado por ela ao cliente" (a).

- "Esse processo de elaboração integra todos os elementos da produção, desde a concepção do romance (que já tinha um olho voltado para o cinema) até o último efeito sonoro. Ele é o triunfo do capital investido. Gravar sua onipotência no coração dos esbulhados que se tornaram candidatos a jobs como a onipotência de seu senhor, eis aí o que constitui o sentido de todos os filmes, não importa o plot escolhido em cada caso pela direção de produção" (a).

Pergunta:

- E como fica a arte nesse contexto?

Resposta:

- “A obra de arte é uma mensagem fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados que coexistem num único significante. Esta ambigüidade torna-se hoje um fim explícito da obra, um valor a realizar de preferência a qualquer outro ... toda obra de arte, mesmo enquanto forma acabada e ‘fechada’, em sua perfeição de organismo exatamente calibrado, é aberta, pode ser interpretada de diferentes maneiras sem que sua irredutível singularidade seja alterada” (b).

- “Na época da reprodutibilidade técnica, o que é atingido na obra de arte é a sua ‘aura’. Este processo tem valor de sintoma; sua significação ultrapassa o domínio da arte . . . multiplicando-lhe os exemplares, elas (as técnicas de reprodução) substituem por um fenômeno de massa um evento que não se produziu senão uma vez . . . seu mais eficaz agente é o filme” (c).

- "A indústria cultural força a união dos domínios, separados há milênios, da arte superior e da arte inferior. Com prejuízo de ambos. A arte superior se vê frustrada de sua seriedade pela especulação sobre o efeito; a inferior perde, através de sua domesticação civilizadora, o elemento de natureza resistente e rude, que lhe era inerente. Na medida em que a indústria cultural inegavelmente especula sobre o estado de consciência e inconsciência de milhões de pessoas às quais ela se dirige, as massas não são o fator primeiro, mas um elemento secundário, um elemento de cálculo; acessório da maquinaria. O consumidor não é rei, como a indústria cultural gostaria de fazer crer, ele não é o sujeito dessa indústria, mas seu objeto. As massas não são a medida mas a ideologia da indústria cultural, ainda que esta última não possa existir sem a elas se adaptar. As mercadorias culturais da indústria se orientam segundo o princípio de sua comercialização e não segundo seu próprio conteúdo e sua figuração adequada. Toda a praxis da indústria cultural transfere, sem mais, a motivação do lucro às criações espirituais. A autonomia das obras de arte, que, é verdade, quase nunca existiu de forma pura e que sempre foi marcada por conexões de efeito, vê-se no limite abolida pela indústria cultural. As produções do espírito no estilo da indústria cultural não são mais também mercadorias, mas o são integralmente" (a).

- "Para o consumidor, não há nada mais a classificar que não tenha sido antecipado no esquematismo da produção. Tudo vem da consciência, na arte para as massas, das equipes de produção. Não somente os tipos das canções de sucesso, os astros, as novelas ressurgem ciclicamente como invariantes fixos, mas o conteúdo específico do espetáculo é ele próprio derivado deles e só varia na aparência. Os detalhes tornam-se fungíveis. A breve seqüência de intervalos, fácil de memorizar, como mostrou a canção de sucesso; o fracasso temporário do herói, que ele sabe suportar como good sportist que é; a boa palmada que a namorada recebe da mão forte do astro; sua rude reserva em face da herdeira mimada são, como todos os detalhes, clichês prontos para serem empregados arbitrariamente aqui e ali e completamente definidos pela finalidade que lhes cabe no esquema. Desde o começo do filme já se sabe como ele termina, quem é recompensado, e, ao escutar a música ligeira, o ouvido treinado é perfeitamente capaz, desde os primeiros compassos, de adivinhar o desenvolvimento do tema e sente-se feliz quando ele tem lugar como previsto. O número médio de palavras da short story é algo em que não se pode mexer. Até mesmo as gags, efeitos e piadas são calculados, assim como o quadro em que se inserem. Sua produção é administrada por especialistas, e sua pequena diversidade permite reparti-las facilmente no escritório. A indústria cultural desenvolveu-se com o predomínio que o efeito, a performance tangível e o detalhe técnico alcançaram sobre a obra, que era outrora o veículo da Idéia e com essa foi liquidada" (a).

- "Não se deve tomar literalmente o termo indústria. Ele diz respeito à estandardização da própria coisa – por exemplo, tal como o western conhecido por todo freqüentador de cinema – e à racionalização das técnicas de distribuição, mas não se refere estritamente ao processo de produção. A indústria cultural mantém-se “a serviço” de terceiras pessoas, e mantém sua afinidade com o superado processo de circulação de capital, que é o comércio, no qual tem origem. Essa ideologia apela sobretudo para o sistema das “vedetes”, emprestado da arte individualista e da sua exploração comercial. Quanto mais desumanizada sua ação e seu conteúdo, mais ativa e bem sucedida é a sua propaganda de personalidades supostamente grandes e o seu recurso ao tom meloso. Ela é industrial mais no sentido da assimilação às formas industriais de organização do trabalho nos escritórios, de preferência a uma produção verdadeiramente racionalizada do ponto de vista tecnológico. É por essa razão que os investimentos inadequados da indústria cultural são tão numerosos e precipitam os seus setores, constantemente ultrapassados por novas técnicas, nas crises, que raramente conduzem a algo melhor. Por outro lado, quando se trata de resguardar-se da crítica, os promotores da indústria cultural comprazem-se em alegar que o que eles fornecem não é arte, mas indústria" (a).

- "O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural. A velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana, tornou-se a norma da produção. Quanto maior a perfeição com que suas técnicas duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme. Desde a súbita introdução do filme sonoro, a reprodução mecânica pôs-se ao inteiro serviço desse projeto. A vida não deve mais, tendencialmente, deixar-se distinguir do filme sonoro" (a).

Pergunta:

- Quer dizer que não dá para escapar?

Resposta:

- "A violência da sociedade industrial instalou-se nos homens de uma vez por todas. Os produtos da indústria cultural podem ter a certeza de que até mesmo os distraídos vão consumi-los alertamente. Cada qual é um modelo da gigantesca maquinaria econômica que, desde o início, não dá folga a ninguém, tanto no trabalho quanto no descanso, que tanto se assemelha ao trabalho" (a).

- "Ao subordinar da mesma maneira todos os setores da produção espiritual a este fim único: ocupar os sentidos dos homens da saída da fábrica, à noitinha, até a chegada ao relógio do ponto, na manhã seguinte, com o selo da tarefa de que devem se ocupar durante o dia, essa subsunção realiza ironicamente o conceito da cultura unitária que os filósofos da personalidade opunham à massificação. A indústria cultural tem o seu suporte ideológico no fato de que ela se exime cuidadosamente de tirar todas as conseqüências de suas técnicas em seus produtos. Ela vive, em certo sentido, como parasita, sem se preocupar com a determinação que a objetividade dessas técnicas implica para a forma intra-artística, mas também sem respeitar a lei formal da autonomia estética. Daí resulta a mistura, tão essencial para a fisionomia da indústria cultural, de streamlining, de precisão e de nitidez fotográfica de um lado, e de resíduos individualistas, de atmosfera, de romantismo forjado e já racionalizado, de outro. Se tomarmos a determinação feita por Walter Benjamim da obra de arte tradicional através da aura, pela presença de um não-presente, então a indústria cultural se define pelo fato de que ela não opõe outra coisa de maneira clara a essa aura, mas que ela se serve dessa aura em estado de decomposição como um círculo de névoa. Assim ela própria se convence imediatamente pela sua monstruosidade ideológica" (a).

Pergunta:

- A indústria cultural não acaba por caracterizar-se mero entertainment?

Resposta:

- "O entretenimento e os elementos da indústria cultural já existiam muito tempo antes dela. A indústria cultural pode se ufanar de ter levado a cabo com energia e de ter erigido em princípio a transferência muitas vezes desajeitada da arte para a esfera do consumo, de ter despido a diversão de sua ingenuidade inoportuna e de ter aperfeiçoado o feitio das mercadorias. Sua vitória é dupla: a verdade, que ela extingue lá fora, dentro ela pode reproduzir a seu bel-prazer como mentira. A arte “leve” como tal, a diversão, não é uma forma decadente. Quem a lastima como traição do ideal da expressão pura está alimentando ilusões sobre a sociedade. A arte séria recusou-se àqueles para quem as necessidades e a pressão da vida fizeram da sociedade um escárnio e que têm todos os motivos para ficarem contentes quando podem usar como simples passatempo o tempo que não passam junto às máquinas. A arte leve acompanhou a arte autônoma como uma sombra. A pior maneira de reconciliar essa antítese é absorver a arte leve na arte séria ou vice-versa. Mas é isto que tenta a indústria cultural" (a).

- "Assim a indústria cultural, o mais inflexível de todos os estilos, revela-se justamente como a meta do liberalismo, ao qual se censura a falta de estilo. Não somente suas categorias e conteúdos são provenientes da esfera liberal, tanto do naturalismo domesticado quanto da opereta e da revista: as modernas companhias culturais são o lugar econômico onde ainda sobrevive, juntamente com os correspondentes tipos de empresários, uma parte da esfera de circulação já em processo de desagregação. Aí ainda é possível fazer fortuna, desde que não se seja demasiado inflexível e se mostre que é uma pessoa com quem se pode conversar. Quem resiste só pode sobreviver integrando-se. Uma vez registrado em sua diferença pela indústria cultural, ele passa a pertencer a ela assim como o participante da reforma agrária ao capitalismo. Não é à toa que o sistema da indústria cultural provém dos países industriais liberais, e é neles que triunfam todos os seus meios característicos, sobretudo o cinema, o rádio, o jazz e as revistas. É verdade que seu projeto teve origem nas leis universais do capital. Formas fixas como o sketch, a história curta, o filme de tese, o êxito de bilheteria são a média, orientada normativamente e imposta ameaçadoramente, do gosto característico do liberalismo avançado. Os diretores das agências culturais – que estão numa harmonia como só os managers sabem criar, não importa se provêm da indústria de confecções ou de um college – há muito sanaram e racionalizaram o espírito objetivo. Tudo se passa como se uma instância onipresente houvesse examinado o material e estabelecido o catálogo oficial dos bens culturais, registrando de maneira clara e concisa as séries disponíveis" (a).

- "Os filmes policiais e de aventuras não mais permitem ao espectador de hoje assistir à marcha do esclarecimento. Mesmo nas produções do gênero destituídas de ironia, ele tem que se contentar com os sustos proporcionados por situações precariamente interligadas. Os filmes de animação eram outrora expoentes da fantasia contra o racionalismo. Eles faziam justiça aos animais e coisas eletrizados por sua técnica, dando aos mutilados uma segunda vida. Hoje apenas confirmam a vitória da razão tecnológica sobre a verdade. As primeiras seqüências do filme de animação ainda esboçam uma ação temática, destinada, porém, a ser demolida no curso do filme: sob a gritaria do público, o protagonista é jogado para cá e para lá como um farrapo. Assim a quantidade de diversão organizada converte-se na qualidade da crueldade organizada. Os autodesignados censores da indústria cinematográfica, ligados a ela por uma afinidade eletiva, vigiam a duração do crime a que se dá a dimensão de uma caçada. Assim como o Pato Donald nos cartoons, assim também os desgraçados na vida real recebem a sua sova para que os espectadores possam se acostumar com a que eles próprios recebem. O prazer com a violência infligida ao personagem transforma-se em violência contra o espectador, a diversão em esforço. Ao olho cansado do espectador nada deve escapar daquilo que os especialistas excogitaram como estímulo; ninguém tem o direito de se mostrar estúpido diante da esperteza do espetáculo; é preciso acompanhar tudo e reagir com aquela presteza que o espetáculo exige e propaga" (a).

- "A indústria cultural permanece a indústria da diversão. Seu controle sobre os consumidores é mediado pela diversão. A grande reorganização do cinema pouco antes da Primeira Guerra Mundial – condição material de sua expansão – consistiu exatamente na adaptação consciente às necessidades do público registradas com base nas bilheterias, necessidades essas que as pessoas mal acreditavam ter que levar em conta na época pioneira do cinema. Ainda hoje pensam assim os capitães da indústria cinematográfica – que no entanto se baseiam no exemplo dos sucessos mais ou menos fenomenais, e não, com muita sabedoria, no contra-exemplo da verdade. Sua ideologia é o negócio. A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ao processo de trabalho na fábrica e no escritório só se pode escapar adaptando-se a ele durante o ócio. Eis aí a doença incurável de toda diversão. O prazer acaba por se congelar no aborrecimento, porquanto, para continuar a ser um prazer, não deve mais exigir esforço e, por isso, tem de se mover rigorosamente nos trilhos gastos das associações habituais. O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda reação: não por sua estrutura temática – que desmorona na medida em que exige o pensamento – mas através de sinais. Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada. Os desenvolvimentos devem resultar tanto quanto possível da situação imediatamente anterior, e não da Idéia do todo. Não há enredo que resista ao zelo com que os roteiristas se empenham em tirar de cada cena tudo o que se pode depreender dela. Uma surpresa estupidamente arquitetada irrompe na ação fílmica. A tendência do produto a recorrer malignamente ao puro absurdo – um ingrediente legítimo da arte popular, da farsa e da bufonaria desde os primórdios até Chaplin e os irmãos Marx – aparece da maneira mais evidente nos gêneros menos pretensiosos" (a).

Pergunta:

- O cinema industrial, então, chega a ser um criador de realidade, substituindo-a?

Resposta:

- “Diferentemente do que ocorre na literatura ou na pintura, a técnica de reprodução não representa, para o filme, uma simples condição exterior que permitirá sua difusão em massa; sua técnica de produção funda diretamente sua técnica de reprodução.
Ela não permite apenas, de modo mais imediato, a difusão em massa do filme: exige-a. Os custos de produção são tão elevados que, se ainda é possível a um indivíduo, por exemplo, comprar um quadro, não lhe é possível comprar um filme. Cálculos revelaram que, em 1927, a amortização de um grande filme exigia sua apresentação a nove milhões de espectadores” (c).

- "A obscuridade do cinema oferece à dona-de-casa, apesar dos filmes destinados a integrá-la, um refúgio onde ela pode passar algumas horas sem controle, assim como outrora, quando ainda havia lares e folgas vespertinas, ela podia se por à janela para ficar olhando a rua. Os desocupados dos grandes centros encontram o frio no verão e o calor no inverno nos locais climatizados. Fora isso, mesmo pelo critério da ordem existente essa aparelhagem inflada do prazer não torna a vida mais humana" (a).

- "A indústria cultural não cessa de lograr seus consumidores quanto àquilo que está continuamente a lhes prometer. A promissória sobre o prazer, emitida pelo enredo e pela encenação, é prorrogada indefinidamente: maldosamente, a promessa a qual afinal se reduz o espetáculo significa que jamais chegaremos à coisa mesma, que o convidado deve se contentar com a leitura do cardápio. A indústria cultural não sublima, mas reprime. Expondo repetidamente o objeto do desejo, o busto no suéter e o torso nu do herói esportivo, ela apenas excita o prazer preliminar não sublimado que o hábito da renúncia há muito mutilou e reduziu a masoquismo. Não há nenhuma situação erótica que não junte à alusão e à excitação a indicação precisa de que jamais se deve chegar a esse ponto. O astro do cinema de quem as mulheres devem se enamorar é de antemão, em sua ubiqüidade, sua própria cópia. Toda voz de tenor acaba por soar como um disco de Caruso, e os rostos das moças texanas já se assemelham em sua espontaneidade natural aos modelos que fizeram sucesso, seguindo os padrões de Hollywood" (a).

- "Rimos do fato de que não há nada de que se rir. O riso, tanto o riso da reconciliação quanto o riso de terror, acompanha sempre o instante em que o medo passa. Ele indica a liberação, seja do perigo físico, seja das garras da lógica. Fun é um banho medicinal, que a indústria do prazer prescreve incessantemente. O riso torna-se nela o meio fraudulento de ludibriar a felicidade. Cada espetáculo da indústria cultural vem mais uma vez aplicar e demonstrar de maneira inequívoca a renúncia permanente que a civilização impõe às pessoas. Oferecer-lhes algo e ao mesmo tempo privá-las disso é a mesma coisa. É isso o que proporciona a indústria do erotismo. É justamente porque nunca deve ter lugar, que tudo gira em torno do coito" (a).



Manoel Marcondes Machado Neto (compilação)
Autor do livro “Marketing Cultural: das práticas à teoria”, editado pela Ciência Moderna. Atuou em produção cultural entre 1983 e 1993. Dedicou-se ao doutorado em Ciências da Comunicação na ECA/USP de 1996 a 2000, com o apoio da UERJ (PROCAD) e da CAPES (PICDT).
É professor da Faculdade de Comunicação Social da UERJ.

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