Teoria
Voltar ao índice
 
 
O processo da criação artística

 (2005, primeiro semestre)


Andersen Viana


Desde as mais remotas eras o ser humano sempre procurou um meio de expressar-se. Ora para aplacar as forças da natureza, para invocar as divindades que as governavam ou para celebrar algo que fosse importante para o grupo, representando, de formas variadas, fenômenos e seres ao seu redor.

O canto de um Xamã, invocando as divindades, esculturas entalhadas em pedra, imagens e pinturas representativas de animais, deuses e semi-deuses, são os primeiros passos da grandiosa aventura criativa da civilização.

A priori não poderia existir uma única fórmula que fosse apreendida e ensinada como um padrão efetivo no processo da criação conceitual e artística. O dilema e a grande dificuldade de qualquer forma de expressão de arte atualmente existente - ou ainda a ser desenvolvida - reside no fato da multiplicidade e diversidade da natureza do meio do realizador, bem como de seu modus operandi.

Se hoje vemos uma pintura rupestre ou o entalhe em rocha da Vênus de Laussel (28.000 AC) e "sentimos" que é uma arte dita "primitiva" - e por essa razão, extremamente pura e despojada de pretensão (?) -, podemos estar "achando" errado, pois esses homens e mulheres tinham a intenção de ritualizar o que para eles era considerado algo mágico, sobrenatural, religioso - e posteriormente - cívico, político e social. Então, essas expressões, não tinham o olhar estético que hoje, desde a mais tenra idade possuímos, pois seu modo era, fundamentalmente, ritual, o que permaneceu desse modo por milênios.

Há pouco mais de sete séculos vivemos a era estética. Desde J. S. Bach (e durante todo o século XVII -, quando o processo de criação musical estava subordinado a uma ordem e regras muitas vezes restritivas - o próprio Bach subverteu essa mesma ordem, enriquecendo sobremaneira a herança musical da humanidade -, até o presente momento, em que sofisticados software e hardware, gerenciados por tecnologias de última geração, realizam complexas operações) os inventores da arte atual deparam-se com grandes dilemas.

Se por um lado as facilidades trazidas pela moderna tecnologia realizam facilmente tarefas de extrema complexidade nunca antes imaginadas a um custo de produção muito baixo, a profunda compreensão dos meios de criação e produção de nossos antepassados não estão tendo a devida atenção. Essa constatação remete-nos a uma padronização conceitual e intelectual de baixo nível, superficial, com pouco conteúdo, baseando-se em valores que estruturaram-se e consolidaram-se nos últimos trinta anos. Esses mesmos valores e conceitos são direcionados exclusivamente pelo mercado, com suas relações de investimento e retorno financeiro, gerenciados pela fórmula dos quatro pês (do marketing).

Por detrás do "conteúdo atrativo" de alguma criação artística - produto ou serviço, pessoal ou coletiva - de modo especial em música e cinema - existe um elaborado plano de promoção e venda. Claro que a cena atual está repleta de exceções, devido principalmente a esforços pessoais e de pequenos grupos organizados.

Comparativamente, a relação entre a proporção aritmética desses oásis criativos e a proporção geométrica dos produtos de consumo de massa impostos por poderosos grupos econômicos detentores de organizadas estruturas comerciais e promocionais não chega a ser significante, mas o processo de pasteurização da arte e da cultura atuais influencia diretamente os criadores, que infelizmente, acabam - com o passar do tempo - por fazer mais e mais concessões, desfigurando, por completo, algo que poderia ser diferencial.

Fórmulas padronizadas estão sendo amplamente difundidas através dos mais variados meios. Que essas criações estereotipadas, essas meias verdades, objetivam o lucro não resta dúvida - o que não acontecia nos séculos passados, mesmo se uma obra fosse encomendada ou se o artista fosse um simples empregado que deveria produzir arte para o consumo do patrão.

Ao fruir os quadros de um Bruegel, um Boticelli ou de um Archinboldo, as esculturas e formas arquitetônicas de um Michelangelo, Bernini ou Borromini, os sons proféticos de um Gesualdo da Venosa , a fantasia das Mil e Uma Noites ou as maravilhosas aventuras do Quixote de Cervantes, deparamo-nos com algo desconcertante, pois constata-se que todos esses fazeres e meios vieram de um único local: a imaginação humana.

Claro que a idéia inicial - matéria prima do todo criativo - foi, pode e deve ser filtrada, trabalhada, exaustivamente estudada, calculada, transformada, variada, adicionada e tantas vezes modificada e repensada. Mas mantém-se inalterada a sua essência - a engenhosidade da invenção.

Podemos, hoje, visualizar uma página da web - através dos pré-fabricados templates - e o "pai da criança" garantirá que é uma obra de arte do mais alto nível, que não pode ser mudada em nada e ai daquele que discordar ou fizer alguma sugestão...

Outro grande dilema: o que é arte hoje? Claro que o exemplo extremo acima citado deixa transparecer claramente o pouco ou nenhum conhecimento dos grandes mestres do passado - alguns de talento tão grande que algumas obras chegam a ser incompreensíveis para o público leigo.

Loops, templates, samplers, copy and paste são alguns exemplos do processo criativo contemporâneo. A técnica - computacional ou não - substituiu a criatividade e o processo de "artesanato artístico" por algo já esperado, padronizado e pasteurizado.

Os fazedores de arte e de cultura reproduzem padrões, as agências anunciam, os comerciantes vendem e o público consome. Uma cadeia que nos remete ao conto de João do Rio, do início do século XX: O Homem de Cabeça de Papelão.

Na "contra-cultura da mediocridade" anda, felizmente, a grande maioria dos escritores e dos cineastas, teatrólogos, pintores, companhias de balé e alguns músicos e grupos musicais alternativos os quais desenvolvem produtos, idéias e conceitos inovadores que podem trazer visões realmente diferenciadas em um mundo em constante transformação.



Andersen Viana

Maestro-compositor, professor e produtor cultural especializado em música para cinema. Estudou em diversas instituições no Brasil, Itália e Suécia: UFMG, Accademia Filarmonica di Bologna, Arts Academy of Rome, Accademia Chigiana di Siena e Royal College of Music - Estocolmo.

Especializou-se na Itália em música para cinema com Morricone e Polizzi. Freqüentou também os seminários sobre cinema e música com Ettore Scola, Giuseppe Tornatore, Trovaioli e oficinas de roteiros cinematográficos, textos e cinema com Paulo Halm, Claudio MacDowell, Ana Miranda e Ataídes Braga.

Por sua obra musical recebeu quinze premiações nacionais e internacionais. Seu catálogo atual consta de 188 obras musicais. Tem composto, dirigido e produzido música para os seguintes filmes: A Cartomante (Cláudio C. Val), Próximo Passo, Gun's Speech, 3:00 AM (Sérgio Gomes), Corações Ardentes (Raimundo Evans), Filhos de Adão (Afonso Nunes), Vivalma (Rubens Camara), Perdidos em Abbey Road (Denis Curi), Manuelzão e Bananeira (Geraldo Elísio) e Jogando pelo Amanhã (Filmmakers).

Tem desenvolvido projetos artísticos e culturais nos seguintes países: Brasil, Suécia, Itália, EUA, Rússia, República Tcheca, Honduras, Reino Unido, Portugal, Grécia e Bélgica.

Contato: www.andersen.mus.br

Voltar ao topo