Prática
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Cruel octógono

 (2018, segundo semestre)


Manoel Marcondes Machado Neto


Cruel octógono, por Manoel Marcondes Machado Neto.

1. Tratar de "marketing para as artes" envolve uma contradição essencial: como tratar algo que "vem da alma" como algo "que é preciso vender"?

2. É claro que muitos artistas se deparam com essa questão logo cedo em suas carreiras – uma vez que, como diz o poeta, "tudo o que move é sagrado e o fruto do trabalho é mais que sagrado..."1.

3. Por outro lado, rotula-se alguns artistas de "comerciais" justamente porque fazem sucesso de público... e de vendas. As empresas fonográficas que (ainda) o digam.

4. Será incompatível o sucesso "de vendas" com a autenticidade artística? Um artista "verdadeiro" preocupa-semaiscom sua arte ou com o sucesso?

5. Um artista almeja o mesmo tipo de êxito que alguém que tenha escolhidoser engenheiro, ou médico, ou advogado?

6. Definitivamente, aborda-seum tema controverso quando se posta, lado a lado, na mesma expressão, as palavras "marketing" e "artes".

7. Com 90 anos de premiação, transmitida a bilhões de telespectadores, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (AMPAS no original em inglês) faz outra provocação às nossas mentes – e ao senso comum, que vê o Oscar como algo visceralmente comercial – colocando ainda, no "mesmo saco" das Artes, as tais das Ciências.

8. Bem, o diálogo, o casamento e a convivência entre a ciência e a arte já foram objeto de uma obra inteira – o CD "Quanta", de Gilberto Gil –, a qual foi muito bem sucedida (como arte) pela crítica "cultural" e (como algo altamente vendável) pela gravadora2.

Domenico de Masi – sociólogo italiano que virou "arroz-de-festa" no Brasil com seu conceito de "ócio criativo" – passeia academicamente pelas dicotomias arte-e-trabalho, trabalho-e-remuneração, trabalho-e-tempo, tempo-e-dinheiro. E encontrou no Carnaval do Brasil a prova de sua tese: há que trabalhar, ter lazer e divertir-se – tudo no mesmo lugar, ao mesmo tempo. Com patrocínio ou não.

Fazer "o que se gosta" nem sempre terá relação com "viver-se do que se faz" em termos de remuneração. Este é um problema central da teoria de Masi. É notória a cultura da semana útil extenuante e desagradável "versus"o final de semana libertador e prazeroso. A letra cantada "Hoje é sexta-feira... tô de saco cheio... chega de aluguel... chega de patrão...", na voz da dupla Chitãozinho e Xororó – em comercial de cerveja –, deixa bem claro a questão.

E que dizer também das pessoas que fazem o que não gostam para se sustentar e vivem onze meses do ano pensando apenas no mês de férias? Muito triste. Mas verdade.

Aí, Domenico de Masivem ao Brasil e conhece uma "indústria" em que "o operariado" é um "... que canta e que é feliz, feliz, feliz"3, comprovando sua tese concebida em um silencioso gabinete acadêmico no frio de Milão.




1 Trecho da letra da música "Amor de índio", de Beto Guedes

2 "Sei que aarte é irmã da ciência, ambas filhas de um Deus fugaz..." – trecho da letra de "Quanta", música de Gilberto Gil.

3 Trecho da letra de"Isso aqui o que é", música de Moraes Moreira.




Manoel Marcondes Machado Neto
Pesquisador e professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Autor da pioneira tese "Marketing Cultural: características, modalidades e seu uso como política de comunicação institucional" (USP, 1999) e do livro "Marketing Cultural: das práticas à teoria" (Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2a. edição, 2005).

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