Prática
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A “eterna crise da produção cultural” ou você já cobrou o seu congressista hoje?

 (2005, segundo semestre)


Manoel Marcondes Machado Neto


Desde o advento da Lei Sarney, em 1986, o setor da produção cultural padece (com honrosas exceções) do patrocínio privado a iniciativas artístico-culturas por organizações menos interessadas na valorização da arte ou no enriquecimento cultural da sociedade brasileira que no ganho financeiro e na conseqüente promoção que tal ação tem o poder de gerar – não de graça, mas às custas de um bom naco da própria renúncia fiscal. Os dados demonstram, ano após ano, que mais da metade do que se vê e ouve em termos de ação cultural, sob a égide federal, advém do patrocínio incentivado.

Cabe aos políticos – tanto no executivo quanto no legislativo – e somente a eles, a penúria em que sempre tem sido deixada a área cultural, por mais que dia sim dia não, tetos podres de tombados patrimônios insistam em desabar sobre as nossas cabeças. Os políticos gostam de dizer que “o segmento precisa organizar-se para reivindicar”, mas não soa razoável pensar que a previdência social contou com 44,60% das verbas orçamentárias executadas em 2004 ou que a saúde tenha contado com 12,50% das mesmas – enquanto a cultura recebeu apenas 0,16% – porque aposentados e pensionistas, ou mesmo os adoentados brasileiros, tenham-se organizado para reivindicar. A previdência e a saúde, assim como a educação – e como deveria ser também para com a cultura –, simplesmente são obrigações do Estado e sua manutenção e incremento devem ser objeto de luta em Brasília, não importando o número de zeros à direita do quinhão orçado, embora nem sempre livre do tal “contingenciamento”. Para efeito pitoresco de comparação: enquanto o gasto do MinC ficou em R$ 456 milhões em 2004, a Câmara do Deputados custou aos cofres da União o total de R$ 2,2 bilhões, e o Senado Federal, R$ 1,8 bilhão. (Fonte: SIAFI / Orçamento da União / 2004 - Total executado: R$ 289,198 bilhões). Infelizmente, como já disse o diretor teatral Aderbal Freire-Filho; “a cultura padece de desimportância política” e nem um partido político briga pela pasta.

Não são ouvidos, pois à grande mídia também interessa o status quo da renúncia fiscal, os – poucos – estudiosos dedicados ao tema, justamente porque provavelmente seriam aqueles que destrinchariam as más práticas que insistem em manter-se mesmo quase vinte anos depois da primeira lei de incentivo e poderiam ajudar a refletir sobre soluções de simples implementação. Ao contrário, são chamados a opinar os diretores de marketing das grandes corporações patrocinadoras – e que já estamos cansados de “ouvir” –, os produtores do mainstream, artistas que precisam pagar as contas mas que há muito tempo já podiam abrir mão do “incentivo” e consultores que devem a sua própria sobrevivência justamente às leis que agora resolveram desqualificar. São certamente os que podem pagar a melhor assessoria de imprensa, mas da imprensa esperar-se-ía buscar mais alguma luz. Na academia, por exemplo.

Mantido um mínimo de coerência no entendimento do que seja produção cultural necessitada de incentivos frente às produções do show business (que, como o próprio termo explicita, trata-se de negócio que se auto-sustenta) não teríamos sempre, de um lado, escândalos, choros e míngua dos administradores de espaços culturais se repetindo, e de outro lado, as denúncias e lamúrias de artistas e produtores agraciados que não recebem os prêmios ou selecionados que não recebem as verbas para a montagem de seus espetáculos, enquanto governantes de estados e municípios realizam shows eleitoreiros com cachês estratosféricos. Muitas das vezes “incentivados”.

Política cultural – como qualquer outra política de governo – se faz com recursos humanos e financeiros. As dotações para a cultura têm que atingir patamares mínimos recomendáveis sob pena de total inação (1% dos orçamentos nacionais é o patamar mínimo recomendado pela Unesco). Ora, se a cultura representa 0,8% do PIB brasileiro (conforme mostrou a pesquisa Economia da Cultura, do MinC, publicada em 1998); em 2004, para um PIB de R$ 1,6 trilhão, isso deveria significar a inversão de R$ 12,8 bilhões na cultura – o que encontra-se a anos-luz da realidade (em 2005 estima-se o aporte de R$ 500 milhões via leis de incentivo mais R$ 480 milhões – não descontados os 50% contingenciados do orçamento do MinC). É insuficiente. É crônica de um 2006 pífio anunciado – e, pior, se não reeleito Lula, o resultado de todo o assembleísmo havido desde 2003 pelo país afora não terá mudado um milímetro no curso da estrada trilhada na década FHC, depois que Weffort reabilitou a Lei Rouanet.

Não se dirige o foco principal da atenção para a (ainda) falta de profissionalização do segmento da produção cultural e de todos os perfis que orbitam em torno do artista – certamente um dos fatores primordiais para esse lastimável estado de coisas.

Produtores trabalham para o artista e não o contrário.

A imprensa insiste em um discurso preconceituoso com relação ao tema “marketing” e não se dá conta de que, com isso, afasta centenas de artistas, produtores culturais, grupos de ação cultural e, principalmente, administradores públicos preguiçosos ou que simplesmente ignoram esse tipo de demanda, de saber e de competência necessários para um trabalho com maior possibilidade de êxito, um pouco que seja mais eqüânime em relação à competência da indústria cultural estabelecida.

É preciso que artistas, preferencialmente através de seus produtores, e instituições culturais constituam-se como entes capacitados em marketing e aí compreenda-se a atividade na sua abordagem clássica, ou seja, um processo abrangente que vai desde a concepção do “produto” ou do “serviço” cultural no mercado até a sua distribuição (verdadeiro nó górdio da área), passando pela sua divulgação e viabilização financeira e comercial.

Não se quer que o artista crie para vender mas que sua produção autônoma ( Benjamim, Adorno e Horkheimer) – possa ser trabalhada competentemente para atingir o público que, aí sim, soberano, fruirá sua obra ( Eco), gostando ou não – e aí já é outra a questão, fora do alcance do marketing. Lobão – retirando-se o midiático preconceito de roqueiro-brigão – toca nessa questão com propriedade. O que move o artista é sua própria criação e não o "consumidor". Isto talvez explique a incompreensão de alguns com a expressão "marketing cultural", uma vez que o que move o marketing, é, sim, o consumidor.

Somente a partir da formação de profissionais que tenham saber e sensibilidade para compreender o processo de criação artística e o próprio e primeiro produtor da cultura – o artista – e que, também a partir de um conhecimento dos processos de produção, comunicação e comercialização do produto do trabalho do artista, possam viabilizar sua entrada e permanência em um nicho do “mercado” cultural, é que teremos a possibilidade de aumentar significativamente a oferta de bens culturais à sociedade, para além dos vibezones, halls sinfônicos, fantasmas de ópera e quebra-barracos da hora.

Por fim, não é demais repetir: marketing cultural, aquele a ser exercido pelas instituições culturais e pelos produtores culturais nada tem a ver com incentivos fiscais. Marketing cultural é atividade que tem amplo potencial de desenvolvimento em termos de trabalho e de consumo. Poderia no futuro até mesmo prescindir do incentivo mas é quem mais dele precisa – embora seja, com as regras atuais, o que menos se benefie. Aquele outro tipo de marketing cultural, utilizado pelas empresas como meio de promoção institucional, este sim, pelos benefícios de imagem que produz, deveria ser o único a ter, desde já, vetado o uso da renúncia fiscal.

Referências

MACHADO NETO, Manoel Marcondes. Marketing Cultural: características, modalidades e seu uso como política de comunicação institucional. Tese de doutoramento. Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. 2000. 529 p.

MACHADO NETO, Manoel Marcondes. Marketing Cultural: das práticas à teoria. Rio de Janeiro, Editora Ciência Moderna (www.lcm.com.br). 2002. 320 p.

www.cepuerj.uerj.br

www.cpdcom.inf.br



Manoel Marcondes Machado Neto
Professor e coordenador de pesquisa e documentação em comunicação e mercadologia na FCS/UERJ.

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