23.12.2009 - Backstage - P. 58 a 65 - Fernando Magalhães - Lei Rouanet: projeto que moderniza lei está parado na Casa Civil.

Dezoito anos depois de aprovada, a lei Rouanet está sofrendo alterações e esperava-se que, em agosto deste ano, daria lugar ao que se acostumou chamar de Nova Lei Rouanet. O projeto de lei com as mudanças, no entanto, está parado na Casa Civil, sem nenhum sinal de que siga ainda este ano para o Congresso.

O objetivo dos ajustes da nova lei é acabar ou ao menos reduzir os problemas gerados na prática. O mais comum, ou o mais conhecido, é o de projetos que ganham patrocínio por representarem um ótimo negócio de marketing. Empresas se beneficiam com uma gigantesca exposição da marca, enquanto manifestações culturais fora do eixo Rio-São Paulo ficam em segundo plano.

“Uma argumentação coerente é que os projetos culturais devem pensar no seu público, onde terão resposta, repercussão, mas existem as outras regiões do Brasil. É necessário buscar um equilíbrio”, defende Fabiano Angélico, da ONG Transparência Brasil.

Fabiano afirma também que a questão central do debate em torno da lei é que se trata de dinheiro público. “A renúncia fiscal como acontece é recurso público. O imposto que a empresa pagaria ao governo vai para o projeto cultural. O controle e as decisões devem vir do Estado. Pode haver algumas participações de fora, mas o poder decisório deve partir das comissões, das instituições, enfim, do Estado”, enfatiza.

O representante da ONG, que atua em defesa do destino certo para os recursos públicos, afirma ainda que existem falhas na lei atual. “Quem presta conta é também quem realizou o projeto”, critica. Outro problema da lei em vigor: nos seus 18 anos de existência, de cada dez reais destinados ao patrocínio, nove são públicos e apenas um real é pago com recursos privados. Os dados do Ministério da Cultura (MinC) mostram uma clara distorção, já que o setor privado deveria ter uma participação maior.

Assinada em 1991, a Lei Rouanet permite às empresas patrocinadoras abatimento no imposto de renda. Para ser enquadrado na lei, o projeto precisa passar pela aprovação do Ministério da Cultura, sendo apresentado à Coordenação Geral do Mecenato e aprovado pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura.

Há cerca de seis anos, as mudanças da nova lei vêm sendo debatidas em todo o país. Foram mais de 14 mil pessoas nos encontros e 2 mil contribuições de artistas, produtores, institutos e entidades setoriais. Mas o que muda de fato? Entre as novidades está a criação de cinco novos fundos de financiamento direto à produção cultural: Artes, Cultura, Diversidade, Patrimônio e Audiovisual.

A renúncia fiscal, maior atrativo da lei, permanece, só que agora com seis faixas de dedução do imposto de renda devido. Além do sistema atual de 100% de abatimento, no máximo, e 30%, no mínimo, foram acrescentadas outras quatro faixas, de 90%, 80%, 70% e 60%.

A lei atual prevê três formas de financiamento: a renúncia fiscal, o Fundo Nacional de Incentivo à Cultura (FNC) e o Ficart, que é um fundo de capitalização. Na prática, a renúncia fiscal foi o único que prevaleceu, enquanto os outros não vingaram. Dados do Ministério da Cultura revelam que 80% do total de investimentos realizados pelo Governo Federal no período entre 2003 e 2007 foram feitos através do mecanismo de renúncia fiscal.

Distorções

O objetivo do MinC de “democratização dos processos de decisão e aplicação dos investimentos públicos em cultura e diversificação das fontes de investimentos” faz sentido. Em 2007, por exemplo, 80% dos recursos foram destinados a estados do Sudeste. O Nordeste captou 6% e o Norte 3%. Uma fonte do governo que prefere não se identificar informa que intermediários do eixo Rio-São Paulo, leiam-se capitais, são responsáveis pela obtenção de metade dos patrocínios aprovados no Ministério. “São grandes escritórios de advocacia, produtores culturais que conhecem o trâmite e têm força em Brasília”. Os eventos preferidos, segundo a fonte, são os grandes festivais de música.

Mesmo no Sudeste são flagrantes as distorções. O Espírito Santo é um caso a ser destacado. O estado capixaba obteve algo como 1% do destinado à região. Localizado entre a Bahia e o Rio de Janeiro, pólos de grande produção cultural, o estado reflete como o problema da distorção é evidente.

O ministro da Cultura, Juca Ferreira, acredita que há consenso no Congresso para aprovar a lei. Em artigo publicado em julho, ele afirma que a Lei Federal de Incentivo à Cultura reflete uma realidade altamente concentradora e excludente. Diz ainda que a “realidade desestimula as empresa a investir e que, apesar do esforço do governo para aprovar projetos de todo o país, a maioria deles não é executada, por depender da decisão do mercado para receber patrocínio”, completa o ministro.

Autor de tese de mestrado defendida no último dia 30, na Fundação Cesgranrio, o gestor cultural Joelson Bernardes Albuquerque acredita que critérios comuns para todas as empresas deveriam ser adotados, ao contrário do que ocorre hoje, em que cada empresa tem seu critério próprio para a escolha do produto cultural a ser contemplado. “Há uma quantidade enorme de projetos e cada empresa tem o seu critério, que é subjetivo. Se o dinheiro é público, o produto cultural tem que ser público. O governo exige, a maioria das empresas não cumpre e o governo cobra pouco”, condena Albuquerque. O instrumento incentivaria as empresas a definirem melhor seus critérios, com transparência nos processos de julgamento de projetos culturais.

Nem todos, entretanto, acreditam que a Nova Lei Rouanet é a solução final de todos os problemas. É o caso do advogado especializado em terceiro setor Fabio Cesnik, que critica vários pontos do texto, como o da criação de um conselho formado por integrantes do governo para a aprovação e renúncia fiscal de um projeto.

“O texto até fala de paridade, mas não especifica como serão feitas as nomeações, qual a quantidade de membros do Executivo, da sociedade... O texto fala em avaliação baseada em critérios transparentes. Mas o que isso quer dizer exatamente?”, questiona.

Outra critica do advogado, autor de Globalização da cultura e Guia de incentivo à cultura (ambos da editora Manole), refere-se mais uma vez ao texto da lei. “O texto fala da criação dos fundos, mas não explica as fontes. A lei precisa definir os limites pelos quais o Poder Executivo vai exercer sua atuação. Talvez por conta dessa questão da legalidade, o projeto de lei não tenha avançado o necessário e continua na Casa Civil”, supõe.

Artistas aprovam

O conselho, assim como outros departamentos, é, segundo o governo, uma forma de tirar poder do departamento de marketing das empresas, que preferem investir em projetos com nomes já consagrados. A medida também serviria para distribuir de forma mais democrática os recursos por todo o Brasil.

Artistas do país inteiro têm se manifestado favoráveis à nova lei. Carlinhos Brown elogia o empenho do Ministério da Cultura e destaca que a cultura tem que ser vista como negócio. “O ministério toma sua função real de liderar a cultura, no momento em que também toma a responsabilidade de partilhar a possibilidade de desenvolvimento para a cultura. Mas o grande avanço não é esse paternalismo que vem das empresas que dizem estar ajudando e, de certo modo, é uma isenção dentro da colaboração do cidadão. Cultura no Brasil deve ser vista como um negócio mesmo, porque é, e não como algo que se está ajudando, como uma quermesse”, destaca.

O cantor Chico César acredita que as mudanças na lei favorecem a democracia entre os artistas que não têm espaço. “Depois de cumprir um pouco o seu papel, a lei passou a beneficiar regiões e grupos. O principal desvio se dá no fato de que artistas, grupos e comunidades que realizam um trabalho de experimentação ou menos conhecidos não tenham acesso aos recursos. A iniciativa do ministério de ampliar as oportunidades e levar recursos para outras regiões trata-se de justiça social, democracia na prática através da cultura. Por isso, aplaudo essas mudanças”, elogia.

Sobre o fato de a lei estar parada na Casa Civil há três meses, o secretário-executivo do Ministério da Cultura, Alfredo Manevy, em entrevista à Folha de S. Paulo de 6 de novembro, tentou minimizar o fato, dizendo que a discussão sobre “valores é um problema”: “A cultura é uma novidade no debate político. Trata-se de uma discussão complexa. São cinco ministérios envolvidos em um projeto que recebeu, na consulta pública, 2 mil contribuições”, justificou.

O jornal registrou na reportagem que a demora se devia, em parte, “ao pé atrás da área econômica, ainda não plenamente convencida da necessidade de aumentar a fatia da cultura no orçamento federal”.

Em clima natalino e em ritmo de festas, tudo indica que o projeto continuará de mesa em mesa na Casa Civil, e que tudo ficará para depois do Carnaval de 2010, quando, na prática, inicia o ano novo. Coincidência ou não, será justamente o momento em que a campanha presidencial – que tem na chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, a candidata do governo – tomará as páginas do noticiário.

Caetano: “música não precisa de apoio”

A maioria dos artistas que trabalham com música acredita que a Lei Rouanet é importante e necessária. A maioria, mas não todos. Caetano Veloso provocou polêmica em junho ao dizer que a música popular não precisa de apoio no Brasil. A afirmação foi feita para a revista Cult. “Sempre considerei o negócio da música muito bem-sucedido no Brasil. Não parecia precisar de incentivos maiores do que os que já tinha. A área que me vem à mente logo que se fala em Lei Rouanet é a do cinema”, declarou o cantor na ocasião.

Depois da reportagem, no mesmo mês de junho o cantor chegou a se irritar, no camarim, depois de um de seus shows, com uma jornalista da Folha de S. Paulo. Segundo a coluna de Mônica Bergamo, publicada no mesmo jornal logo após o ocorrido, a repórter foi convidada a se retirar do camarim do cantor após tentar entrevistá-lo a respeito da discordância entre sua declaração sobre a Lei Rouanet e a iniciativa de seus produtores.

Apesar de Caetano Veloso achar que a música não precisa de incentivo no Brasil, seus produtores apresentaram um projeto para captar R$ 2 milhões para a turnê do novo álbum do cantor, Zii e Zie, de acordo com a Folha de S. Paulo. A captação teria sido negada pelo Ministério da Cultura porque a comissão que analisa as propostas entendeu que o projeto era comercialmente viável e não precisaria de incentivo.

N. R.: Até o fechamento desta edição, o Ministério da Cultura não enviou para a redação de Backstage, como solicitado, uma lista com os nomes dos artistas beneficiados pela Lei Rouanet nos últimos anos, bem como os valores aprovados para cada projeto, dados estes que deveriam estar acessíveis no site do órgão para consulta de quaisquer interessados, o que não ocorre. Entendemos que, por envolver isenções fiscais cujas cifras chegam aos milhões de reais – dinheiro que, em tese, deveria ser usado em projetos sociais, saúde, educação, infraestrutura e outras áreas – trata-se de informação de interesse público e, como tal, deveria primar pela transparência.

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