20.02.2009 - O Globo - Segundo Caderno - P. 2 - Fernando Duarte - Hollywood, a poderosa arma dos EUA: pesquisador inglês critica uso da indústria cinematográfica como propaganda e defesa do governo americano

Matthew Alford é fã de cinema e faz da sétima arte seu ganha-pão como acadêmico do departamento de mídia da Universidade de Bristol. Na madrugada de amanhã para segunda-feira, porém, o pesquisador deverá estar no sétimo sono quando a cerimônia do Oscar for transmitida nas TVs do Reino Unido. Trata-se de mais do que uma questão de fuso horário, ele deixa bem claro: Alford não perderá sua noite de sono para acompanhar o que vê como uma tendência ainda vigente na produção cinematográfica americana de apologia ao status quo.

Um ponto de vista que o inglês defende com unhas e dentes em "Projecting Power: American Foreign Policy and the Hollywood Propaganda System" ("Projetando poder: a política externa americana e o sistema de propaganda de Hollywood"), tese de doutorado no qual discute a influência de pressões políticas e corporativas no produto que milhões de pessoas nos EUA e no mundo assistem enquanto mastigam pipoca e bebem refrigerante. Tal relação de poder, segundo Alford, teria se acentuado ainda mais durante os oito anos que George W. Bush e seus amigos neoconservadores ocuparam a Casa Branca.

Benevolência em relação a intervenções militares

A tese ainda nem nem chegou às livrarias britânicas - o livro sairá em abril ou maio - e já está alimentando diversos debates sobre o tema.

- Por mais que haja uma série de estudos sobre o uso da mídia como arma de desinformação e propaganda, há pouco material acadêmico sobre Hollywood - afirma o inglês em entrevista a O GLOBO, por telefone. - A disciplina de estudos cinematográficos, por exemplo, ainda é muito mais ligada ao uso do cinema pelo nazismo na Alemanha. No entanto, as grandes produções modernas dos EUA endossam ou fazem pouco para desafiar concepções fundamentais da política externa americana, de uma benevolência latente em ações como intervenções militares, por exemplo.

Alford, porém, vai além do argumento ideológico bastante conhecido no Brasil por leitores do chileno Ariel Dorfman e seu "Para ler o Pato Donald". A propaganda hollywoodiana também leva em conta interesse de grandes corporações intimamente ligadas aos grandes estúdios, como é o caso da multinacional General Electric, que entre suas subsidiárias tem a Universal. No livro, a GE é uma vilã habitual. O pesquisador cita especialmente o caso de "Munique", o filme de Steven Spielberg sobre a reação do serviço secreto israelense aos atentados que mataram atletas do país nas Olimpíadas de 1972:

- Israel é, além de aliado histórico dos EUA, um dos clientes mais fiéis do braço militar da GE, que vende a Tel Aviv mísseis e sistemas de propulsão para aviões e helicópteros - afirma Alford. - O filme não apenas termina com um tomada do World Trade Center, numa mensagem do tipo "eis a razão de nossa luta", como dá espaço de apenas dois minutos e meio dos 167 de duração para a questão palestina...

Que tal expressão é um direito dos envolvidos, Alford não discute. Mas o inglês chama atenção para as reações que tentam silenciar movimentos opostos. Um dos exemplos mais gritantes, de acordo com o pesquisador, é "Salvador", filme de Oliver Stone que em 1986 levou às telas uma visão iconoclasta da intervenção militar americana em El Salvador, denunciando o conluio de Washington com o aparato militar salvadorenho - inclusive nos notórios esquadrões da morte - enquanto mostrava simpatia pela guerrilha esquerdista.

Stone, porém, precisou ser socorrido por investidores britânicos para que "Salvador" saísse do papel depois de ter batido com a cara na porta de todos os grandes estúdios de Hollywood.

- Pouco tempo depois, Stone até conseguiu fazer "JFK", mas a maneira como teve sua reputação questionada de forma incessante por veículos de mídia ligados a grandes corporações foi inacreditável - opina Alford.

Autor também cita exemplos de visões mais críticas

O pesquisador também se preocupa com a intervenção direta de órgãos governamentais americanos, sobretudo em filmes de exaltação do heroísmo de militares e agentes do serviço secreto, como "Falcão Negro em perigo", "True Lies" e um dos casos preferidos de Alford, "Força Aérea Um":

- Há envolvimento direto e indireto de órgãos como o Ministério da Defesa e mesmo a CIA na produção desses filmes. Ainda mais quando falamos de "Força Aérea Um", em que o mocinho enfrentando terroristas é ninguém menos que Harrison Ford na pele do presidente dos EUA. Por sinal, agentes e militares quase sempre aparecem como vítimas nesse tipo de filme e mesmo o sofrimento de africanos ou outros povos do terceiro mundo beira a caricatura.

Alford também nomeia os bons bois. Elogia produções como "Hotel Ruanda", "Senhor das Armas" e "Três Reis" como bons exemplos de visões mais críticas em relação aos desmandos de Washington e casos de sucesso nas bilheterias. Ainda que seu questionamento possa soar quixotesco, o inglês acredita que seu livro possa ao menos causar algum tipo de comichão nas orelhas da audiência e, eventualmente, fazer com que algumas produções possam receber um voto de desconfiança do bolso do freguês.

- Não discordo da importância da diversão para o grande público que vai ao cinema. Mas as pessoas precisam saber que estão sendo manipuladas e que esse tipo de procedimento na verdade tem impacto negativo na qualidade dos filmes. É preciso encorajar o público a entender o que está por trás do produto que elas consomem - diz.

O pesquisador aponta também para um outro cenário, em que mesmo sem o tal endosso ideológico explícito, um filme pró-establishment recebe tratamento preferencial. Apesar de um fracasso nas bilheterias perceptível mesmo nas primeiras semanas em cartaz, sem falar das críticas negativas que recebeu, "Pearl Harbor" (2001), a simplória farra de computação gráfica dirigida por Michael Bay, antes até dos atentados de 11 de setembro já tinha seu período de exibição estendido pela Disney. Depois acabou pegando carona na onda de nacionalismo que tomou conta dos EUA após os ataques ao World Trade Center e ao Pentágono.

Arte de visões distintas

Entre o apoio...


PEARL HARBOR, de Michael Bay (2001): "Mesmo sem o tal endosso ideológico explícito, um filme pró-establishment recebe tratamento preferencial. Apesar de um fracasso inicial de público e crítica, antes dos atentados de 11 de setembro já teve seu período de exibição estendido pela Disney - ainda que tenha pego carona na onda de nacionalismo que tomou conta dos EUA após os ataques ao World Trade Center e ao Pentágono."

HOMEM DE FERRO, de Jon Favreau (2008): "Além de ter contado com o apoio da fabricante de aviões Boeing e do Departamento de Defesa dos EUA, conta a história de um comerciante de armas que depois de aprisionado por terroristas resolve se regenerar construindo uma armadura superpoderosa, com a qual ataca alvos no Afeganistão...".

VOO UNITED 93, de Paul Greengrass (2006): "Lançado como uma história verídica de passageiros que evitaram um dos ataques terroristas do 11 de setembro ao lutar com os sequestradores - justamente num momento em que a versão oficial apresentada pelo governo Bush era seriamente questionada pela mídia independente e pelo público nos EUA."

... e o questionamento

O JARDINEIRO FIEL, de Fernando Meirelles (2005): "Um filme em que, para começar, africanos não foram mostrados de maneira simplória, como um povo que precisa ser ajudado pelos EUA ou pelas grandes potências ocidentais. Algo também exibido em "Diamantes de Sangue", por exemplo."

SENHOR DAS ARMAS, de Andrew Niccol (2005): "Lançado pela Lion Gate Films, uma empresa canadense formada por um banqueiro, mas que não pertence a uma multinacional com interesses diversos. Este filme, que mostra um lado pouco conhecido do tráfico de armas, é um caso raro de filme politicamente ousado."

SYRIANA - A INDÚSTRIA DO PETRÓLEO, de Stephen Gaghan (2005): "Um exemplo de uma tendência de filmes mais questionadores e críticos da política externa americana, sobretudo por tratar da questão do petróleo e do terrorismo no Oriente Médio sem simplesmente adotar a filosofia do nós contra eles."

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