13.09.2005 - O Globo - Segundo Caderno - P. 1 - Mauro Ventura - Língua e olhar afiados. Cineasta de prestígio, Ruy Guerra atira farpas nos festivais e colegas de profissão.

Bloquinho na mão, a mocinha de seus 13 anos se aproximou do cineasta Ruy Guerra e perguntou: — Você é famoso?

— Não, não sou.

Diante da negativa, ela se afastou e foi buscar autógrafo em outra freguesia. Aconteceu no Festival de Gramado, uns seis anos atrás. Ao contrário do que disse à garota, Guerra é famoso, tem seu nome ligado à história do cinema brasileiro desde “Os cafajestes”, de 1962, e “Os fuzis”, de 1964, mas não suporta aquele burburinho típico dos festivais de cinema.

— Gramado virou um evento social. Detesto Cannes, detesto aquela feira. Todos os festivais estão caminhando para isso — diz. — Eles deveriam ser uma espécie de prospecção de experiências cinematográficas, mas viraram vitrines comerciais. E o público não é de cinéfilos, é de turismo.

Aos 74 anos, recém-completados, Guerra conserva a língua afiada e a vitalidade. Seu novo filme, “O veneno da madrugada”, baseado no livro de Gabriel García Márquez, estréia dia 25 de novembro — antes, participa da competição dos festivais de San Sebastian, Biarritz e Brasília.

Guerra já escreveu 40 páginas e seis canções do musical que está fazendo sobre Dom Quixote, a convite do diretor Ernesto Piccolo. As letras serão musicadas por Lenine.

— É um cordel, tem umas travessuras no meio — antecipa.

Além disso, está retomando um projeto antigo, a adaptação cinematográfica do livro “Quase memória”, de Carlos Heitor Cony, que deverá ter José Wilker no papel principal. Também vai buscar patrocínio para “O tempo à faca”, filme com idéia original sua e roteiro da ex-mulher Luciana Mazzotti. É a história de uma vingança, passada no Nordeste.

— Tenho vontade de rodar em preto-e-branco. Mas se meus filmes já são para gueto, daqui a pouco vou fazer para dez espectadores — faz a auto-ironia Guerra, que ainda dá aulas de linguagem cinematográfica na Gama Filho e trabalhou como ator em “Casa de areia”, de Andrucha Waddington.

O ano que vem também promete ser movimentado. Guerra quer escrever o livro “A ciência e a malandragem do plano-seqüência” — que está no primeiro capítulo.

“O veneno da madrugada”, uma co-produção Brasil, Argentina e Portugal, é a quarta adaptação que ele faz de um livro de García Márquez — depois de “Erêndira”, “A fábula da Bela Palomera” e “Me alugo para sonhar”. É a história de um tenente incorruptível que é designado prefeito de uma pequena cidade onde todo mundo é corrupto, num país que vive uma guerrilha. Gabo, como o escritor é conhecido, nem sequer viu o roteiro.

— Ele só vai ver o filme agora, já pronto. Gabo sabe que cinema é uma coisa e obra literária, outra — diz o diretor, com seu inseparável charuto, em sua casa no alto do Jardim Botânico, onde sopra uma brisa nos fins de tarde. — Não digo que é o último filme que fazemos juntos, porque achei que o terceiro seria. E este livro dele, “Memórias de minhas putas tristes”, é lindo.

“Adoro anões. Tenho ternura por eles”.

A exemplo de “Estorvo”, há um anão, personagem vivido por Fabiano Costa.

— Ele é fantástico. Fiz teste com uns 40 atores e todos eles interpretavam o personagem de anão. Fabiano se comporta como se tivesse 1,80m. Adoro anões. Tenho ternura por eles. Não gosto de trabalhar com crianças no cinema. Abaixo de 1,20m, só anão — ri.

A preferência não tem a ver com a baixa estatura que ele tinha quando adolescente, época em que media apenas 1,31m. Seu pai, preocupado, organizou uma junta médica que resolveu aplicar injeções de crescimento no menino.

— Felizmente um primo médico impediu o tratamento. Poderia dar gigantismo e debilidade mental — diz ele, que acabou crescendo naturalmente até 1,70m. — Quando eu escrever minhas memórias, o título será: “Eu já fui anão.”

A amizade com Gabo vem de 1972, quando se conheceram em Barcelona. Viam-se todo dia e o escritor chegou a escrever uma crônica onde contava que ele botava uma garrafa de uísque de um lado da sala, outra de outro, e os dois só saíam depois que dessem conta das duas.

— Tem um pouco de mito — diverte-se ele, que comenta a dobradinha: — Uma vez ele escreveu que a pessoa com quem mais gosta de trabalhar sou eu porque não o considero como García Márquez quando estou trabalhando. Eu o questiono, não mitifico. As pessoas trabalham muito respeitosamente com ele.

Com Mario Vargas Llosa as relações são mais conflituosas. Os dois trabalharam juntos diariamente, durante três meses, no roteiro de um filme sobre Canudos, que acabou não saindo. Anos depois, o peruano lançou “A guerra do fim do mundo”. Guerra diz que o escritor roubou a idéia, os personagens, as histórias e as situações e transformou na primeira parte de seu livro. No último Festival de San Sebastian, os dois estiveram presentes.

— Deixei de ir no Guggenheim de Bilbao porque teria que ir na van com ele.

Certa vez, o ator Gérard Depardieu criticou Guerra por não fazer filmes mais comprometidos com a realidade brasileira. O diretor explica que o problema é financeiro.

— No teatro, é a mesma coisa, com raras exceções o pessoal só faz comédia. É muito difícil encontrar financiamento para filmes que saiam dessa corrente.

Ele não gostou da declaração de Depardieu.

— Irritou-me, porque ele é um excelente ator, mas faz muita porcaria. Não sinto nenhuma autoridade para ele dizer isso. Se transmitisse essa postura crítica no cinema, tudo bem.

Diretor prefere filme que tenha suor e sujeira.

Guerra não gosta do que chama de cinema asséptico — prefere suor e sujeira. Em “O veneno da madrugada”, seu 15 filme, que tem no elenco Leonardo Medeiros, Juliana Carneiro da Cunha, Fábio Sabag e Tonico Pereira, chove do princípio ao fim.

— É um filme muito escuro, que tem muita lama.

Não por casualidade, um dos filmes de que ele mais gostou nos últimos tempos foi o documentário “Estamira”, de Marcos Prado, sobre uma mulher que tira seu sustento do lixão.

— É um documentário muito bonito. Ele embeleza um pouco, mas o personagem é fantástico e se sobrepuja a isso.

O cineasta não gosta quando o embelezamento se confronta com a realidade. Daí sua resistência a “Cidade de Deus” e “Central do Brasil”.

— A câmera tem sempre uma ideologia. No caso de “Cidade de Deus”, você tem imagens marcadas por uma estética que vai contra a temática do filme — diz. — A temática é marginal e a estética tem a marca consumista do videoclipe, que é um material de venda. Há uma busca por uma estética que não bate com a temática do filme. Mas o garoto (Fernando Meirelles) tem talento, não é isso que está em questão.

No caso de “Central do Brasil”, ele acha um produto para exportação e vê contradição parecida.

— Quando o filme entra Brasil adentro, teria que ser uma estética suja. A câmera tem que colar com a realidade.

Guerra não viu o novo filme de Walter Salles, “Água negra”, mas não entende as razões que levaram o diretor a trabalhar em Hollywood.

— Tem um certo deslumbramento filmar nos Estados Unidos — diz o diretor, que aponta uma vantagem em trabalhar no Brasil: — Não há liberdade para fazer este filme que eu fiz nos Estados Unidos. Aqui, pode-se fazer coisas contra a corrente e lá você é obrigado a se moldar.

Exatamente o que Guerra sempre evitou.

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