25.11.2011 - O Globo - Opinião - P. 7 - Luiz Carlos Barreto - Demandas estratégicas.

Os alimentos, as fontes de energia limpa, a água, os conteúdos criativos da informação, lazer e conhecimento, e ainda o petróleo, se constituirão nas maiores demandas do século XXI. Em matéria de alimentos, o Brasil vem se preparando bem, com a adoção de inteligente política de produção. Na energia limpa, nossa posição é confortável dados o potencial hidrelétrico e a política atômica para fins pacíficos, e ainda as reservas de água potável (16% da reserva mundial). Dispensável falar do que representa o pré-sal.

O preocupante é pensar na nossa condição de produtores de conteúdos culturais com vistas ao abastecimento da extensa e moderna rede de difusão da informação, do lazer e do conhecimento que já está montada no Brasil. Sabemos que nossa capacidade técnica e artística e o nosso saber fazer não estão ainda respaldados por estruturas empresariais sólidas, capitalizadas e capazes de manter um fluxo de produção contínuo.

O Brasil consome, só na área do entretenimento, televisão, cinema , rádio, telefonia, internet, mais de 800 milhões de horas de produtos que preenchem as grades de programação das redes de comunicação de massa hoje instaladas, cobrindo quase cem por cento do território nacional. São oito redes de TV operando em escala nacional, mais de 400 programadoras de TV por assinatura, cerca de 30 milhões de antenas parabólicas, quase 220 milhões de telefones celulares [e fixos] e mais de 20 milhões de computadores [domésticos] nas mãos de vorazes navegadores da internet.

Em recente relatório divulgado pela conceituada PriceWaterhouseCoopers, o Brasil e a China são os líderes mundiais do crescimento da indústria do entretenimento, cuja cifra de negócios atingiu US$ 1,7 trilhão. Dentre todas as atividades econômicas, foi o setor que mais cresceu, numa média de 8,5% ao ano, enquanto o Brasil e a China cresceram na base de 8,7% e 12%, respectivamente.

Em outro relatório, prevendo o que acontecerá de 2010 a 2014, a PriceWaterhouseCoopers afirma que China e Brasil continuarão liderando esse crescimento da indústria do entretenimento. Com relação ao Brasil, o relatório revela ainda que a cifra de negócios da indústria do entretenimento atingiu US$ 23 bilhões até 2010, e que até 2014 essa cifra atingirá perto de US$ 60 bilhões.

Estamos vivendo com intensidade o nosso grande momento de país em desenvolvimento e o boom da convergência tecnológica, e sequer produzimos 5% dos conteúdos veiculados nas grades de programação das televisões, cinemas, internet etc.

Assim como o petróleo tem sido até aqui o combustível gerador da energia do mundo contemporâneo, os conteúdos criativos já são, e cada vez mais serão, a energia, a força mobilizadora do século XXI.

O poder e a força de influência dos países será medido pela sua riqueza cultural e capacidade de produzir e difundir sua criatividade.

As culturas nacionais são ativos ainda não contabilizados. A riqueza cultural que decorre dos hábitos e costumes da vida cotidiana de cada povo é reserva natural como as florestas, as águas, os minérios que precisam ser transformados em bens de consumo. O cinema, a música, a dança, a literatura, as artes plásticas, a moda, a culinária, as manifestações culturais populares etc. são produtos artísticos, bens de consumo gerados no bojo da indústria cultural e que devem ser usufruídos democraticamente pelas populações. Bens culturais, assim como água, as fontes de energia limpa e alimentos são as grandes commodities do século XXI.

Com a aprovação da Lei 12.485 pelo Senado, recentemente sancionada, criam-se as condições básicas para a existência de um mercado para a produção audiovisual brasileira. O mérito dessa lei é abrir o mercado de TV por assinatura, hoje restrito a 11 milhões de assinantes, para as empresas de telefonia, o que determinará o crescimento de 11 para 50 a 70 milhões de assinantes. Isto significa democratização do consumo dos conteúdos audiovisuais.

Outro fator importante é a criação das cotas de exibição para as produções independentes de conteúdo nacional. Ainda que modesta, a cota de três horas e meia semanais para conteúdo brasileiro cria a demanda de produção de cerca de mais de 15 mil horas de conteúdos brasileiros para as grades de programação das TVs por assinatura.

As políticas de renúncia e incentivos fiscais devem ser reformuladas, e a maior parte do bolo deve ir para o consumo, pois é impensável que, numa população de 190 milhões de pessoas, apenas 20 milhões tenham acesso ao consumo dos bens e eventos artístico-culturais. O investimento considerável que está sendo feito pelo governo [federal] para dotar o Brasil de um poderoso e moderno sistema de banda larga é o caminho correto para democratizar o conhecimento, a informação e o lazer.

Com a entrada em vigor da Lei 12.485 e do advento da banda larga implantada na maioria dos [5.568] municípios se cria a necessidade de ocupar esse espaço com uma razoável presença de conteúdos brasileiros. Para tanto, é necessário se criar um fluxo de recursos para o financiamento e a capitalização das empresas de produção, distribuição e difusão de conteúdos nacionais, deixando para trás os atuais mecanismos burocráticos e acanhados.

A nova conjuntura exige um planejamento industrial para o audiovisual brasileiro, a fim de capacitá-lo a atender a demanda interna, e a competir internacionalmente.

Temos que pensar na formulação de um novo modelo. O atual, centralizador e burocrático, não atende à realidade construída nos últimos dez anos. Precisamos formular um novo modelo que provoque uma sinergia entre os ministérios da Cultura, da Indústria e Comércio e das Comunicações.

COMENTÁRIO

Luiz Carlos Barreto, do alto de seus 80 anos de vida e de mais de três quartos desse tempo respirando, produzindo e desenvolvendo o cinema brasileiro - o que lhe garantiu a alcunha de o Barretão, acerta não em uma mosca, mas em várias que permanecem voando tontas por aí, no Brasil inteiro - mas especialmente em Brasília - desde a criação de um ministério da Cultura, em 1985.

Trata da fragilidade da relação "de consumo" cultura por habitante no país. Trata dos monopólios que represam a criatividade do brasileiro para produzir e veicular sua própria cultura - as iniciativas privadas de crowdfunding e governamental dos Pontos de Cultura querem ser furinhos nessa barragem - setor que não tem recebido qualquer atenção dos governos, nas três esferas, para além de sua sempre claudicante manutenção.

Trata do produto do trabalho de artistas e criadores como bens culturais - tecla em que vimos batendo neste wesbite desde sua criação, em 1999 - e, portanto, com potencial para se tornarem bens econômicos, capazes de gerar e distribuir riqueza desde que sob a égide de corretas estratégias de marketing. Isto desmistifica a arte e pode acabar com ainda existente preconceito "familiar" para com a escolha do caminho artístico por um jovem, no Brasil, e, principalmente, extirpar das nossas mentes o esquema mental que considera o artista, antes de tudo, um sofredor, um pobre, um necessitado "de uma força", um idealista for ada realidade, ou seja, um cidadão de segunda classe que, às vezes, pode chegar ao estrelato e, até, enriquecer.

Trata do - também repisado por nós - absurdo divórcio entre Comunicação e Cultura no país. Não só na burocracia (que também separou a Cultura da Educação), mas também nas leis, direitos e organização.

O artigo do Barretão toca em feridas profundas. Que seu toque "de Midas", que já alçou produções brasileiras até o altar da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, transforme merda em ouro, em se tratando da estrutura e dotações para a Cultura no país.

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