05.02.2011 - O Globo - Segundo Caderno - P. 1. - André Miranda - Mãos à obra. Cada vez mais fortes no Brasil, práticas de “crowd funding”, uma forma de financiamento coletivo organizada na internet, ampliam os mecanismos de investimento cultural.

Os fãs de Raul Seixas já podem ir economizando. No documentário “Raul: o início, o fim e o meio”, que o diretor Walter Carvalho prepara sobre o cantor baiano, qualquer pessoa poderá contribuir com uma quantia em dinheiro em troca de ter seu depoimento incluído no fim do filme, enquanto sobem os créditos. Outras poderão ter apenas seu nome nos agradecimentos, e mais algumas, ingressos para uma pré-estreia fechada. Assim, todas elas estarão colaborando para que o filme seja feito. Estarão, ainda, praticando o crowd funding, uma forma de investimento que criou novos mecanismos de apoio cultural no mundo e ganha força no Brasil com pelo menos três sites – o Incentivador, o Catarse e o Queremos.

O modelo de financiamento coletivo funciona assim: em troca de algumas vantagens, um grupo de pessoas se junta para reunir um valor que permita que um projeto se torne realidade. Na prática, isso já ocorre há décadas, principalmente em projetos de cunho social. Mas a diferença, agora, é que a mobilização tem sido usada para que pessoas físicas possam proporcionar a criação artística.

– Há uns anos, quando o quadrinista americano Mark Millar preparava uma nova história, ele convocou as pessoas a ajudarem uma instituição de caridade. Depois, ele fez um sorteio entre os que ajudaram para dar ao nome ao personagem principal. O Dave Lizewski, do “Kick-Ass”, então, realmente existe. A mesma lógica pode funcionar para estimular a criação artística ou até pesquisas científicas – diz Micael Langer, cabeça por trás do Incentivador.

Cauby e Miquinhos na fila

Um dos diretores de “Simonal – Ninguém sabe o duro que dei”, Langer teve a ideia de criar um mecanismo para que pessoas pudessem investir em projetos culturais há quatro anos, durante a produção do filme. Dali, seu documentário ficou pronto sem leis de incentivo, ele amadureceu a ideia, reuniu parceiros, e o Incentivador está recebendo os últimos retoques para entrar no ar no próximo dia 13. Será, até agora, a maior iniciativa de crowd funding no país, com uma carta inicial de 20 projetos, como “Raul: o início, o fim e o meio”; o curta de animação “Mar de paixão”, de Allan Sieber; o documentário “Cauby – começaria tudo outra vez”, de Nelson Hoineff; e um DVD dos Miquinhos Amestrados.

– Assim como no “Kick-Ass”, vamos ter uma faixa de contribuição no “Mar de paixão”, em que a pessoa dará o nome e a fisionomia ao protagonista – conta Langer. – Essas contrapartidas vêm do autor do projeto. Ninguém se mete no trabalho artístico. O que nosso site fará é criar condições para um projeto.

O crowd funding já vem dando bons resultados em outros países há alguns anos. O caso mais famoso é o do Kickstarter, um site americano lançado em abril de 2009, com foco em projetos da indústria criativa. Mais de mil propostas já passaram pelo site, e a contribuição média é de 68 dólares.

Um dos casos mais bem sucedidos do Kickstarter é o do filme “Blue like jazz”. Para realizá-lo, o autor do livro homônimo, Donald Miller, se uniu ao diretor Steve Taylor. A meta era arrecadar US$ 125 mil, para dar início à produção. As faixas de contribuição variavam de US$ 10 (o que dava direito a um telefonema do diretor para agradecer) até mais de US$ 8 mil (o que garantia uma leitura do livro por Miller in loco). Outra possibilidade era dar US$ 5 mil para o projeto e poder passar um dia como assistente de direção do filme. Com isso, a expectativa dos criadores de “Blue like jazz” foi em muito superada: o projeto recebeu US$ 346 mil de 4.495 pessoas. As filmagens começaram em outubro do ano passado, e o filme deve ser lançado este ano.

O grande ponto do crowd funding é que existe uma troca de valor, não é simplesmente uma doação – afirma Diego Reeberg, um dos criadores do Catarse. – Além disso são as próprias redes sociais de um autor que apoiam seus projetos. Cerca de 80% dos valores arrecadados pelo crowd funding vêm de pessoas que, de alguma forma, já tinham familiaridade com os autores.

O Catarse foi lançado em 17 de janeiro a partir da sociedade de dois estudantes de Administração de São Paulo com uma empresa de Porto Alegre. Até agora o site conta apenas com cinco projetos, mas outros cinco devem ser colocados no ar na próxima semana. São mil acessos diários e o montante arrecadado já se aproxima de R$ 8 mil.

Um dos projetos do Catarse é o romance “Uma breve história do amor”, de Ibrahim Cesar. O próprio autor explica no site a contrapartida para quem colaborar com R$ 1 mil: “Para a pessoa de grande coração e grande salário que contribuir com esta quantia eu somente posso oferecer meu tempo e esforço em encontrar para ele ou ela seu amor verdadeiro”. Certamente é uma pechincha.

Queremos sonhar com Ben Jor

Porém, na maioria dos sites de financiamento coletivo, a contrapartida mais comum é o próprio produto (CD, DVD, livro etc.) ou ingresso para show, peça ou exposição. É uma lógica simples e prática: se um sujeito se interessa por uma ideia, ele garante a sua realização ao mesmo tempo em que faz a compra. Caso o valor investido não seja suficiente, o procedimento padrão dos sites é devolver o investimento.

Esse processo é similar ao do Queremos, com a imensa diferença que, neste, os contribuintes podem ter o dinheiro de volta mesmo se a meta for alcançada. O Queremos já produziu cinco shows internacionais no Rio – o último, do Vampire Weekend, aconteceu na noite de anteontem, no Circo Voador –, todos a partir de uma venda antecipada de ingressos entre fãs ou empresas. Nele, esses investidores iniciais podem recuperar sua grana (parte ou toda) caso um determinado número de entradas seja vendido após a confirmação do show. Até quinta, todas as apresentações haviam dado retorno integral. No dia 17, o Queremos tem agendado o grupo LCD Soundsystem, e ainda sonha com uma re-edição do show de “A tábua de esmeralda”, disco clássico de Jorge Ben Jor. Os organizadores planejam, também, ampliar seus negócios para outras áreas.

– A gente pensa muito em levar o modelo para mais cidades do Brasil e da América do Sul. E também sentimos falta de certas exposições, palestras ou mostras de cinema no Rio – diz Pedro Seiler, um dos criadores do Queremos. – É muito bom poder juntar pessoas para conseguir um bem comum.

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